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No Labirinto de Kafka: Modernismo, Judaísmo e o Peso do Inconsciente

 

Por: Silvério da Costa Oliveira.

 

Franz Kafka

 

1- Vida e obras

 

Franz Kafka ou František Kafka (1883-1924) nasce em Praga (Boémia, Império Austro-Húngaro, atual República Tcheca) e vem a falecer em 1924 vitimado por tuberculos
e pulmonar, então com 40 anos de idade (de 3 de julho de 1883 até 3 de junho de 1924, temos exatamente 40 anos e 11 meses), em um sanatório em Kierling, perto de Klosterneuburg (República Austríaca, atual Áustria), de nacionalidade austro-húngaro (hoje tcheco), mas proveniente de família judaica.

Seus pais foram Hermann e Julie Löwy (Kafka), seu pai atuava como comerciante e Kafka foi o mais velho de seis filhos (três meninos e três meninas) que teve o casal, sendo que dois de seus irmãos morreram quando ele ainda era criança, antes de completar sequer 7 anos de idade, já as suas três irmãs (Elli, Valli, Ottla) morreram vítimas do holocausto nazista na década de 1940.

 


Criado em um bairro judeu de Praga, Kafka falava tcheco e alemão, mas o alemão era sua língua preferencial, optando por ela ao escrever, refletindo a elite cultural da cidade. Frequentou escolas alemãs e, concluídos os estudos básicos em 1901, ingressou na universidade alemã de Praga, começou a dedicar-se ao estudo de química, mas por pouco tempo, pois trocou o curso para Direito logo nas primeiras semanas. No ano de 1906 conclui seu curso de Direito. No ano de 1910 tornou-se vegetariano.

Após a conclusão de seu curso de Direito, em 1906, buscou trabalho na Companhia de Seguros Assicurazioni Generali, onde trabalhou por breve período, mais tarde atuou no Instituto de Seguro de Acidentes de Trabalho, lugar no qual permaneceu por 14 anos de sua vida, saindo somente por causa de motivos de saúde vinculados a sua tuberculose.

Foi diagnosticado com tuberculose em agosto de 1917 e em virtude da doença mudou de cidade e saiu de seu emprego, passando longos períodos em sanatórios e balneários com o objetivo de tentar recuperar sua saúde ou amenizar sua condição, já que na época não havia cura para esta doença. Ao final de sua vida, a tuberculose bloqueou sua garganta impedindo a ingestão de alimentos e como não havia ainda sido inventado a alimentação parenteral (administração de nutrientes diretamente na corrente sanguínea através da veia) veio a falecer de fome (subnutrição). Kafka veio a falecer em um sanatório em Kierling, próximo de Viena.

Kafka nunca se casou ou teve filhos (há uma polêmica se este teria tido um filho sem dele ter conhecimento, suposição esta baseada em especulações sobre uma relação com Grete Bloch, amiga de Felice Bauer), apesar disto, relatos de pessoas com quem conviveu afirmam ter tido várias mulheres (namoradas, amantes e prostitutas), tendo grande ímpeto e desejo voltado para o sexo, bem como, ter Kafka uma opinião muito favorável sobre o casamento e filhos.

Kafka começou a escrever ainda jovem, mas a maior parte de sua obra foi publicada postumamente e também se considera que grande parte desta obra tenha sido destruída por ele, e outra parte considerável ainda requeira publicação mesmo nos dias atuais. Atuou como escritor (romances, contos), sendo que teve poucas obras publicadas quando ainda em vida e expressou para seu amigo Max Brod (1884-1968) que conhecera em 1902, o desejo de ter todos os seus manuscritos destruídos após a sua morte, desejo este que não foi realizado, sendo publicadas, inclusive, obras incompletas. Entre 1912 e 1915, produziu suas obras mais conhecidas, como “A Metamorfose”, 1915, e capítulos de “O Processo” (publicado postumamente em 1925).

Max Brod foi amigo de longa data de Kafka, mantendo a amizade até o fim de seus dias e sendo por Kafka nomeado seu testamenteiro em relação a sua obra. Kafka cedeu os direitos de sua obra literária para Max Brod, pouco antes de morrer, deixando instruções para que destruísse seus manuscritos, mas Brod desobedeceu, fiel à sua visão, ignorou o pedido, publicando obras como “O Processo”, “O Castelo”, 1926, e “América”, 1927. Aliás, há registro que ainda em vida Kafka teria destruído por fogo boa parte de seus manuscritos inéditos durante o período em que viveu em Berlim conjuntamente com sua amante Dora Dymant, entre 1923 e 1924. Há quem afirme, como Max Brod, ter sido 90 por cento destruída pelo autor, e outra parte considerável continuou inédita.

Sua obra é vasta e foi toda escrita em língua alemã, apesar de sua nacionalidade Tcheca e origem judaica. Dentre sua obra publicada, alguns títulos se destacam diante do público e da crítica, como tal é o caso de “Descrição de uma luta”, escrita entre 1904–1909 e parcialmente publicada em 1909. Em sua obra vemos seus personagens enfrentarem a solidão e a falta de esperança. Também “A metamorfose”, 1915, obra na qual o personagem principal, Gregor Samsa, acorda um dia transformado em um bicho, um animal nojento e impuro, descrito em algumas traduções como sendo um inseto e a partir desta inesperada e absurda transformação, encontra a rejeição de todos, inclusive sua própria família, na casa em que vive, se limitando a se isolar em seu quarto, sem conseguir se comunicar e, mesmo, em certo momento, vê até os móveis do quarto lhe serem retirados, como se nada mais restasse de sua condição humana. Outra obra importante é “O processo”, 1914-1915 (mas que só foi publicada postumamente, em 1925, por Max Brod), nesta obra impecável, Kafka nos apresenta seu personagem principal, Joseph K, uma pessoa que fora submetida a um processo judicial, detida e presa sem saber do que se trata o processo ou do que é acusado. Além destas obras aqui citadas, cabe mencionar também “Amerika” ou “O Desaparecido”, 1912 (publicada postumamente em 1927, sendo seu primeiro capítulo, a obra “O foguista”, um conto), “O castelo”, 1922 (publicada postumamente em 1926), “Na colônia penal”, 1919, “Um médico rural”, 1919, “Um artista da fome”, 1922, “A grande muralha da China”, um conto (publicação póstuma de 1931).

No ano de 1911 Kafka tentou um empreendimento envolvendo a fabricação de amianto, montando uma fábrica junto com familiares e dedicando seu tempo livre a mesma, apesar de ser algo visto como estimulante no início, posteriormente passou a ser por ele visto como algo que lhe impedia de dar prosseguimento à atividade de escrita, com a qual se sentia profundamente comprometido.

Entre os anos de 1909 e 1912 e conjuntamente com seu amigo Max Brod, fez várias viagens de turismo, pela Europa, tendo nestas ocasiões visitado e conhecido Riva, Paris,  Itália e Weimar.

Além de escritor e intelectual, Kafka foi um boêmio e se relacionou com muitas mulheres, tendo ficado noivo por três vezes, duas com a mesma mulher, mas nunca se casou. Sua vida pessoal foi marcada por relacionamentos intensos. Ficou noivo duas vezes de Felice Bauer (1914 e 1917) e uma vez de Julie Wohryzek (1919, rompido em 1920 em parte por pressões familiares), além de ter um romance apaixonado com Milena Jesenská por volta de 1920-1921. E claro, sua última mulher, Dora Dymant durante 1923 e 1924. Esses relacionamentos, documentados em cartas, revelam sua luta com a intimidade e a autopercepção.

Felice Bauer (1887-1960), um dos grandes amores de Kafka e com quem teve oportunidade de trocar uma grande correspondência por cinco anos, foi por ele conhecida em 1912 na casa de seu amigo Max Brod, mantendo o relacionamento amoroso até o ano de 1917. Em 1920 conhece Milena Jesenská (1896–1944), jornalista, ativista política tcheca de família judaica, que também conheceu por meio de seu amigo Max Brod. Apesar da amizade intensa, Milena era uma mulher casada, por isto, mesmo tendo trocado enorme correspondência, só temos o registro de dois encontros pessoais, este relacionamento durou até o ano de 1923. Neste ano, conhece Dora Dymant (1898-1952), jovem jornalista também de família judaica. Kafka a conheceu na Alemanha durante um passeio pela costa do Mar Báltico e ela se tornou sua mulher, amante e companheira até os últimos momentos de sua vida. O casal inicialmente viveu em Berlim até o início de 1924, quando Kafka retornou a Praga para o tratamento de sua doença, que havia se agravado.

Apesar do tom sombrio presente em suas obras, Kafka foi descrito pelos que com ele conviveram, como sendo uma pessoa inteligente, simpática, bem-humorada e agradável. Durante a sua vida não obteve grande fama como escritor, vindo esta logo após a sua morte.

Registra-se ter Kafka sido abatido por uma forte crise emocional, depressão, no ano de 1914. Alguns comentadores vinculam esta crise ao início da primeira guerra mundial e outros a contratação de seu noivado. Sua saúde sempre foi frágil, com crises de ansiedade e problemas respiratórios. Em 1917, foi diagnosticado com tuberculose, que o levou a longos períodos em sanatórios. Em 1922, aposentou-se por invalidez devido à piora da doença. Nos últimos anos, viveu com Dora Diamant, uma jovem que compartilhava seu interesse pelo judaísmo, em Berlim, onde tentou uma vida mais independente.

Como judeu em uma Europa marcada pelo antissemitismo, Kafka sentia-se deslocado, tanto em sua identidade cultural quanto em sua vida pessoal. Ele se interessava pelo sionismo e pela cultura iídiche, mas sua relação com o judaísmo era mais intelectual que religiosa.

Ideologicamente em algum momento de sua vida Kafka se viu como vegetariano, ateu, socialista e mesmo anarquista, mas não foi ardente defensor de nenhuma destas teses. Chegou a participar de grupos revolucionários anarquistas por um tempo, mas acabou não se identificando com os mesmos. Sua obra, por sua vez, vai em um sentido oposto ao do socialismo, ao destacar justamente não o coletivo e sim o individual, o existencial e único presente em cada um e, como tal unicidade pode sofrer diante de demandas familiares e sociais. Claro que sua obra pode ser lida, também, como uma crítica ao Estado, a burocracia e as relações de poder e autoridade, enquanto todos estes elementos mostram-se opressores do indivíduo.

Kafka se encontra hoje entre os maiores escritores do século XX e suas obras nos mostram com enorme originalidade uma atmosfera que nos lembra o absurdo e surreal, em uma forma única de explorar a angústia existencial humana conjuntamente com a alienação. Seus personagens se encontram em um ambiente sufocante e, por vezes, se mostram distantes, mas sempre enfocando dilemas e questões profundamente humanas. Toda esta complexidade emocional presente em sua obra e em seus personagens pode ser compreendida como um reflexo da vida, do sofrimento e da complexidade emocional do autor. Provavelmente de seu ambiente familiar e de sua relação quando ainda criança com seus pais, buscou Kafka a inspiração para as tramas nas quais estão inseridos seus personagens, diante de situações de dominação, exploração, solidão, por vezes diante de forças ou autoridades que não conseguem entender e contra as quais são impotentes.

Quanto ao estilo literário, sua obra costuma ser vinculada ao modernismo e expressionismo, apresentando como características: deformação da realidade, realismo fantástico, irracionalismo e nonsense; caráter subversivo, anticonvencionalismo e antitradicionalismo; ausência de idealizações e fluxo de consciência; fragmentação; angústia existencial; atmosfera de opressão; pessimismo; presença de alegorias.

A temática presente na obra de Kafka, diante da criação de circunstâncias absurdas, angustiantes e sem esperança, acabou gerando a criação da expressão “kafkiano” para se referir a situações do mundo real por nós vividas que sejam semelhantes às criadas pelo autor em sua obra por meio de seu estilo tão singular.

Em um mundo que criou uma sociedade altamente conectada como a nossa nos dias atuais, onde predomina o excesso de informação com a falta de conhecimento genuíno (fruto de meditação e trabalho árduo de interpretação e entendimento das fontes), gerando uma sensação de esmagadora insegurança, a obra de Kafka ganha traços puramente contemporâneos, ao narrar situações nas quais temos a experiência de sermos esmagados por sistemas totalmente impessoais, situações nas quais impera o silêncio e a culpa diante do absurdo da ausência de sentido para a vida, portando, a obra de Kafka mostra-se ainda hoje extremamente atual para nos ajudar a refletir sobre este nosso mundo em constante transformação e questionamento de tradicionais valores e do surgimento de ideologias redentoras.

Kafka morreu em 3 de junho de 1924, aos 40 anos, em um sanatório perto de Viena, devido a complicações de tuberculose laríngea. Kafka se tornou conhecido como um dos maiores escritores do século XX, por sua exploração da alienação, culpa e absurdo. Sua vida, marcada por conflitos internos, inseguranças e uma busca por sentido, reflete-se em sua obra, que continua a inspirar leitores e pensadores.

Grande parte da obra de Kafka, seus inúmeros manuscritos, continuou inédita em termos de publicação mesmo em anos recentes. Tendo Kafka deixado toda a sua obra para seu amigo Max Brod, este editou e publicou várias de suas obras, mas grande parte dos manuscritos ainda estavam inéditos quando Max Brod faleceu em 1968 e este os deixou para sua secretária, Ester Hoffe, que publicou e vendeu alguns, deixando a maioria para suas duas filhas, Eva e Ruth. A família de Hoffe posteriormente se envolveu em uma briga judicial com o Estado de Israel pela propriedade destes manuscritos e enquanto isto mantendo-os inéditos.

O Legado Inacabado de Kafka mais parece uma saga judicial saída de suas páginas. Franz Kafka, o mestre da burocracia opressiva e da alienação humana, deixou um testamento que ironicamente gerou uma das disputas mais labirínticas da história literária: a instrução para que seu amigo Max Brod queimasse todos os manuscritos após sua morte, o que este além de não fazer, ainda ajudou a salvar o legado de Kafka dos nazistas ao fugir de Praga em 1939 com uma mala cheia de papéis. Ao morrer em 1968, em Israel, Brod legou o acervo à sua secretária, Esther Hoffe, com a orientação explícita de transferi-lo a uma instituição pública, como a Biblioteca Nacional de Israel (NLI).

Hoffe, no entanto, reteve os documentos por décadas, vendendo itens valiosos (como o manuscrito original de O Processo por US$ 2 milhões em 1988) e guardando o resto em condições precárias, em apartamentos e cofres bancários na Europa. Após sua morte em 2007, o acervo passou para suas filhas, Eva Hoffe e Ruth Wiesler, que o defenderam como herança privada, resistindo a demandas de venda ou doação. O que se seguiu foi uma batalha judicial digna de um romance kafkiano: ações em Israel, Alemanha e Suíça, com acusações de roubo, condições insalubres (incluindo gatos destruindo papéis) e debates sobre o "patrimônio cultural judaico". As filhas argumentavam por direitos de venda; o Estado de Israel, pela preservação pública.

O desfecho veio em 2016, com a Suprema Corte de Israel rejeitando a apelação final das herdeiras em uma decisão unânime e inapelável. Os manuscritos (milhares de páginas, incluindo cartas manuscritas de Kafka a Brod, diários de Paris, desenhos inéditos e fragmentos de Brod) foram declarados propriedade da NLI, que os recebeu integralmente entre 2016 e 2019, inclusive de cofres em Zurique. As herdeiras perderam a posse, mas ganharam royalties de edições futuras, evitando uma fragmentação comercial.

Hoje, em 2025, o acervo não é mais um segredo guardado: a NLI digitalizou e disponibilizou online mais de 200 itens desde 2021, permitindo que pesquisadores e leitores explorem desenhos desconhecidos, como retratos da mãe de Kafka, e anotações pessoais. Uma exposição em Jerusalém, de dezembro de 2024 a junho de 2025, celebra o centenário de sua morte com originais em exibição. Embora edições impressas críticas ainda prossigam, o "tesouro" de Kafka deixou de ser inédito para se tornar acessível.

Como parte de seu legado, sua obra influenciou inúmeros outros autores, como o caso de Jean-Paul Sartre e Albert Camus, representantes do Existencialismo.

Essas experiências pessoais moldaram os temas centrais de sua obra, explorados a seguir.

 

2- Interpretação da obra de Kafka segundo as prováveis intenções conscientes do autor

 

Franz Kafka desenvolveu sua obra literária em um contexto de tensão (cultural, social, religiosa, familiar, pessoal) que aparece em suas obras nos temas nela abordados (alienação, burocracia opressiva, culpa, busca por significado em um mundo aparentemente absurdo, figuras muito autoritárias em posição de comando). Neste tocante, questões de índole universal e pessoal surgem em tom irônico, desafiando o leitor a refletir sobre sua própria condição humana. Temos presente a alienação, o isolamento, a burocracia opressiva, a culpabilidade e a autopunição, a busca por significado, a experiência como judeu, dentre outros pontos cruciais por ele abordados e desenvolvidos.

Kafka vivia em um estado de constante desconforto com sua identidade, enquanto judeu em uma Praga antissemita, como filho em conflito com um pai visto por ele como sendo autoritário, e como escritor em um emprego burocrático. Suas obras refletem essa alienação de forma intencional.

Em “A Metamorfose” 1915, Gregor Samsa, transformado em uma criatura grotesca, é rejeitado por sua família, simbolizando a exclusão do indivíduo que não se encaixa. Kafka, que descreveu a escrita como uma "oração" em seus diários, parece querer retratar a solidão como uma condição universal, mas também profundamente pessoal, ecoando sua própria sensação de ser um outsider. Em “O Castelo” (escrito em 1922), o agrimensor K. é incapaz de se integrar à vila ou alcançar as autoridades, um possível reflexo consciente da luta de Kafka para encontrar um lugar em um mundo que o autor via como indiferente e hostil.

Como funcionário de um instituto de seguros, Kafka conhecia bem o peso da burocracia, e suas obras frequentemente satirizam sistemas opacos e desumanizantes. Em “O processo” (1914–1915), Josef K. enfrenta um tribunal incompreensível que o julga por um crime nunca explicado. Kafka parece ter querido criticar a arbitrariedade do poder institucional, uma realidade que ele via no Império Austro-Húngaro, com suas hierarquias rígidas. Da mesma forma, em “O castelo”, a burocracia do castelo é intencionalmente retratada como inacessível, sugerindo uma crítica deliberada à impotência do indivíduo diante de estruturas de poder. Kafka, em cartas, expressava frustração com a "máquina" burocrática, indicando que esses temas eram uma escolha consciente para expor a absurdidade de sistemas que esmagam a autonomia humana.

A culpa é um tema central em Kafka, muitas vezes ligada à sua relação conturbada com o pai, Hermann, e à sua autopercepção como inadequado. Em “Carta ao Pai” (1919), Kafka explicitamente expõe esses sentimentos, descrevendo como a figura paterna o fazia sentir inferior e incapaz. Essa culpa consciente permeia suas obras ficcionais. Em “Na colônia penal” (1914), a máquina de execução que grava a sentença no corpo do condenado reflete uma visão de justiça como punição inevitável, quase sádica, sugerindo que Kafka queria explorar a culpa como uma força que consome o indivíduo, mesmo sem motivo claro. Em “O processo”, a culpa de Josef K. é ambígua, mas Kafka parece intencionalmente sugerir que a sociedade impõe um peso moral que o indivíduo internaliza, mesmo sem compreender.

Kafka parece estar fascinado por questões existenciais, ele usava suas narrativas em suas obras para questionar o propósito da vida em um mundo aparentemente sem respostas. Em “Um artista da fome”, 1922, o protagonista jejua em busca de uma arte pura, mas é ignorado pelo público, que não entende seu sacrifício. Kafka, que via a escrita como uma busca espiritual, parece ter querido retratar a tensão entre a aspiração individual por significado e a indiferença do mundo. E, claro está, esta obra é desenvolvida em uma época na qual o próprio autor perdia peso a cada novo dia, vindo ao final a ficar com menos de 50 Kg, em virtude da ingestão de alimentos ser cada vez mais difícil e mesmo dolorosa, já que sua garganta estava muito comprometida pela tuberculose já em fase final e que lhe levaria a óbito. Em América (1911–1914), Karl Rossmann enfrenta um mundo caótico nos EUA, e Kafka usa essa jornada para criticar em tom irônico o "sonho americano" enquanto explora a busca por pertencimento, uma busca que ele sabia ser frustrante, como expressou em cartas a amigos como Max Brod.

E não podemos esquecer a origem judaica de sua família, mesmo que Kafka não fosse praticante de sua religião, sua identidade judaica influenciou suas obras de forma consciente, especialmente em um contexto de crescente antissemitismo na Europa, presente e visível mesmo hoje, no século XXI. Em “A metamorfose”, a exclusão de Gregor pode ser lida como uma metáfora para a marginalização dos judeus, um tema que Kafka, interessado pelo sionismo e pelo teatro iídiche, provavelmente tinha como intenção abordar. Em “Carta ao Pai”, ele reflete sobre as tensões entre sua identidade judaica e as expectativas de assimilação de seu pai, um comerciante que valorizava o sucesso social. Kafka usava esses elementos para comentar, de forma intencional, a alienação cultural e a pressão por integração em uma sociedade hostil à comunidade judaica e seus integrantes, como o próprio Kafka.

Conscientemente, Kafka usava suas obras para explorar a condição humana em um mundo que ele via como absurdo, opressivo e indiferente. Seus temas (alienação, burocracia, culpa, busca por significado e a experiência judaica) eram escolhas deliberadas, enraizadas em sua vida como um judeu em Praga, um filho em conflito e um escritor preso em um emprego mecânico. Suas narrativas, muitas vezes inacabadas, refletem uma intenção de deixar o leitor inquieto, sem respostas fáceis, como se o próprio Kafka quisesse que enfrentássemos o vazio que ele sentia. Essa abordagem, ao mesmo tempo pessoal e universal, torna suas obras altamente provocativas.

 

3- Interpretação da obra de Kafka segundo as prováveis intenções inconscientes do autor

 

Podemos também entender a obra de Kafka em um contexto mais amplo e universal, que inclua o contexto histórico europeu de sua época, sua experiência como judeu em uma sociedade antissemita que via os mesmos como marginalizados, e por meio, também, de uma abordagem interpretativa psicanalítica por meio do pensamento e obra de Freud e outros. Neste tocante, elementos presentes na obra de Kafka podem ter um significado do qual o próprio autor não era consciente, elementos estes impulsionados por forças culturais e pessoais vividas pelo autor.

Em suas obras, como podemos citar aqui “A metamorfose” e “O processo”, desejos reprimidos provindos do Id (dentro da teoria psicanalítica de Freud) se fazem presentes, revelando a forte presença de um Édipo não trabalhado e não plenamente consciente, na qual a mãe surge como uma figura sedutora e também “impura”, a semelhança de uma “puta” (prostituta) seduzindo sexualmente os homens (o bebê, a criança, o filho). Já a figura de autoridade surge como um ser distante e indiferente (como seria a imagem do pai). Disto resulta o enorme e impagável sentimento de culpa que jamais poderá ser redimida, somente pela morte, transformação em um ser impuro ou pela total aniquilação.

Kafka seria um paciente modelo para Freud, com certeza, um ótimo cenário para inúmeras interpretações psicanalíticas e fruto do seu tempo histórico cultural como também o foram outros homens que se apresentaram na mesma época a Freud para tratarem de seus problemas e distúrbios emocionais. Uma angústia presente a muitos homens em sua época, conjuntamente com um enorme medo do qual não se sabe conscientemente a origem e que Freud aponta para o medo da criança em ser castrada pelo pai, por desejar a mãe e ser por ela correspondido. Casos clínicos clássicos trabalhados aos montes por Freud e seus discípulos, frutos de um contexto sociocultural e histórico (lembremos do trabalho de Bronisław Malinowski), hoje em dia cada vez mais raros, cuja enorme raridade os torna em uma mera exceção e não em regra como nos tempos de Kafka e Freud.

No início do século XX, a Europa passava por transformações radicais: a ascensão da burocracia estatal no Império Austro-Húngaro, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e o modernismo literário que questionava a racionalidade humana. Kafka, vivendo em Praga exercendo atividade de um burocrata funcionário de uma empresa de seguros, capturou consciente ou inconscientemente o espírito de uma Era onde o indivíduo se via esmagado por sistemas impessoais.

Em “O processo”, o julgamento de Josef K. por um crime não especificado reflete a alienação burocrática de sua época, onde leis opacas e autoridades distantes simbolizam o colapso da justiça racional buscada pelo Iluminismo no século XVIII. Nesta obra fica claro que há um crime que não é dito, um processo cujo tema não pode ser revelado, mas todos sabem e todos se sabem também culpados. Detalhe, todos os acusados são homens, não mulheres. Trata-se de um crime que fora cometido por todos os homens, que não pode ser abertamente dito, mas todos o conhecem e sabem que ninguém é inocente. Numa leitura psicanalítica, o crime em questão é o desejo pela mãe, algo correspondido, e que gera enorme culpa. Nesta sociedade contemporânea em evolução do final do século XIX e início do XX, a culpa se apresenta como uma herança individual e coletiva advinda da enorme repressão sexual nela presente e provinda da ação do superego, dentro da segunda tópica do aparelho psíquico de Freud.

Também podemos antever aqui em Kafka o futuro conceito de absurdo, presente na obra de Albert Camus, na qual a busca de sentido em um mundo irracional e sem sentido pode levar a desumanização.

Na obra “América” temos uma sátira ao sonho americano com seu otimismo, também uma crítica ao capitalismo então desenvolvido na Europa, dando destaque a condição de solidão humana ampliada na condição de imigrante, que pode também nos lembrar um conceito presente em outro autor, Georges Simmel, outro pensador de origem judaica, que diante de temática semelhante inclusive por suas origens étnicas, propõe o conceito de “o estrangeiro”. Uma Era de migração em massa, onde as pessoas viajam em busca de melhores condições de vida e no caso dos judeus, por vezes buscando fugir ao antissemitismo reinante e que posteriormente resultaria no holocausto nazista no qual Kafka perderia suas três irmãs.

Kafka é um judeu europeu que busca assimilar a cultura reinante em Praga, uma grande e sedutora cidade, rica em modismos e em desenvolvimentos intelectuais, mas também marcada, como outros grandes centros europeus de sua época, pelo profundo antissemitismo. Tais temas, de exclusão e impureza são profundamente incorporados por Kafka em sua obra, seja de modo consciente ou inconsciente. Kafka, afinal, apresenta uma identidade como a de muitos judeus de sua época, dividida entre por um lado a necessidade de uma assimilação cultural forçada e, por outro lado, um sionismo intelectual marcante. Isto permeia toda a sua obra, como, por exemplo, “A metamorfose”, na qual temos que Gregor Samsa passa por uma transformação radical que o exclui do convívio familiar e social, impedindo-o, inclusive, de trabalhar e continuar atuando como o mantenedor econômico de sua família, perdendo sua utilidade dentro de uma ótica capitalista e utilitarista simplista. Gregor Samsa se transforma em uma criatura totalmente ambígua, cujo termo em alemão usado por Kafka para descrever a situação, “Ungeziefer”, não possui uma tradução clara e irreprovável. Por vezes traduzida como “inseto” ou mesmo tida como uma “barata”, está mais para ser uma “criatura” ou popularmente um “bicho”, já que o termo “inseto” foi escolhido (da mesma forma que “barata” para alguns”) somente pelo seu caráter implícito e explícito de “repulsa”. No entanto, o termo faz alusão direta à cultura judaica, sendo um conceito vinculado ao “tamei”, impuro, como descrito no Torá, em Levítico 11. Impuro são animais proibidos de serem usados para sacrifícios ritualísticos dentro da religião judaica, já que podem contaminar todo o ritual, também trata-se de animais que não podem ser usados como alimento, sendo seres repulsivos. Trata-se aqui de uma impureza que é ao mesmo tempo física e simbólica. O personagem, Samsa Gregor pode ser entendido neste tocante como judeu e marginalizado, uma criatura impura, aos olhos da sociedade e mesmo de sua família, o que pode ser uma autopercepção do próprio autor aqui extravasada. Kafka, afinal, é um outsider em sua época, escritos e sociedade.

Uma redenção aqui só pode ser obtida, ou pelo menos tentada, pela morte. Tal é o caso que vemos ocorrer com, por exemplo, o personagem principal presente em “A metamorfose” e também em “O processo”. A transformação do personagem principal em um ser impuro (A metamorfose) pode ser lida como uma manifestação de processos inconscientes do próprio autor ou como a situação por vezes hostil enfrentada pela comunidade judaica em uma Europa antissemita, na qual a perseguição explícita ou não, se faz presente e a própria existência enquanto judeu pode ser carregada de culpa, ambas as situações (processos internos e inconsciente dentro do romance familiar, ou realidade vivida externamente enquanto judeu diante do antissemitismo reinante) podem exigir a completa aniquilação do sujeito para que então possa haver a sua redenção ou mesmo purificação do que antes era impuro.

Em “O castelo”, a exclusão de K. do castelo inacessível ecoa a diáspora judaica, uma busca eterna por pertencimento em uma terra hostil. Kafka, interessado pelo teatro iídiche e sionismo (vide as cartas a Max Brod), pode ter canalizado inconscientemente o trauma coletivo judeu, transformando-o em metáforas universais de alienação.

As obras “A Metamorfose” e “O Processo”, dentre outras mais, revelam traços inconscientes como os descritos pela psicanálise de Freud e seus discípulos. Mesmo que Kafka não conhecesse (neste tocante, é indiferente se Kafka conhecia ou não e em que profundidade) a obra de Freud, foram contemporâneos (Freud em Viena, Kafka em Praga) e Kafka, como muitos outros em sua época, apresenta os mesmos traços de vários dos pacientes então analisados por Freud.

Isto sugere que influências do que fora estudado e identificado por Freud e seus discípulos operavam no inconsciente cultural da época, manifestando-se em Kafka como em pacientes de Freud. O complexo de Édipo (desejo pelo genitor do sexo oposto e rivalidade com o do mesmo sexo) emerge inconscientemente em suas obras, ampliando sua visão da mãe como "puta" sedutora, o pai indiferente e a culpa erótica.

Em “A metamorfose”, Gregor luta com desejos reprimidos: sua dependência da família mascara um anseio edípico pela mãe, vista como acessível aos "outros homens" (irmã e pai), enquanto o pai, inicialmente fraco, torna-se tirânico. A transformação em Ungeziefer impuro pode ser uma punição autoimposta pelo desejo incestuoso, ecoando a castração freudiana, Gregor "deixa de existir" como homem, redimindo-se pela morte. Isso reflete a culpa de ceder aos "caprichos eróticos da mãe", uma dinâmica inconsciente que Freud descreveria como regressão à fase oral (relação mãe-bebê), onde o filho se sente culpado por sua dependência.

Em “O processo”, os homens aguardando julgamento representam a culpa edípica universal, o "crime" inominável de desejar a mãe, conhecido por todos, mas reprimido. As mulheres, sedutoras e manipuladoras (como Leni ou as figuras nos tribunais), assumem o papel de "mãe sedutora", enquanto os homens são "filhos" impotentes, perseguidos por um superego paterno (o tribunal). O pai indiferente aparece metaforicamente na autoridade ausente, que "não quer ver" a situação, permitindo a sedução, como no personagem “o advogado” e sua amante que passa também a ser amante de Josef K. A busca de uma redenção, novamente (já que em “A metamorfose” o personagem principal que sofre a transformação também encontra ao final este destino trágico como solução de seu drama), vem pela execução de Josef K., uma morte que busca expiar a culpa, transformando o acusado em "impuro" descartável. Kafka, como um possível "paciente" de Freud, expressa angústias edípicas da era vitoriana tardia, onde repressões sexuais produziam neuroses.

Inspirado em Lacan, que postulava o inconsciente como estruturado pela linguagem, e outros que argumentavam sobre a importância da cultura, podemos argumentar que os sintomas histéricos e obsessivos estudados por Freud em seus pacientes eram produtos da Europa repressora do século XIX e início do XX, por vezes raridades hoje, devido à disseminação cultural das ideias psicanalíticas. Freud, ao nomear o inconsciente pela linguagem, alterou a cultura, tornando comportamentos outrora reprimidos, parte do discurso coletivo, o que modifica sua expressão.

Kafka, imerso nessa mesma Era, expressou o "divã" freudiano na literatura: suas obras capturam o inconsciente, em suas tramas presentes na cultura da Europa, incorporando neste caldo cultural a rejeição dos judeus, onde a culpa edípica se manifesta como burocracia opressiva ou transformação impura.

Como Lacan diria, o "Significante" (a lei paterna) estrutura o desejo, e em Kafka, o castelo ou tribunal representa o "Nome-do-Pai" ausente, levando à alienação. Essa historicidade que aqui defendemos pode explicar por que neuroses obsessivas (como a culpa em “Na colônia penal”, com sua máquina de punição) eram comuns na época de Kafka/Freud, mas evoluíram com a cultura pós-freudiana, influenciada por guerras e modernismo.

Inconscientemente, Kafka canalizou o trauma edípico em metáforas que transcendem sua Era: a mãe sedutora como ameaça cultural (ecoando medos patriarcais europeus), o pai indiferente como falha da autoridade (refletindo o colapso imperial), e a suposta impureza judaica como punição coletiva. Em Carta ao Pai, o conflito edípico é quase consciente, mas em romances como “Um artista da fome”, o jejum simboliza uma ascese contra desejos reprimidos. Sua interpretação posiciona Kafka como um sintoma de sua época (um homem expressando no papel o que outros levavam ao divã), e Lacan reforça que a linguagem de Freud "curou" culturalmente esses padrões, tornando-os menos prevalentes. O legado? Kafka ilumina o inconsciente humano, convidando-nos a confrontar culpas inomináveis em um mundo ainda burocrático e alienante.

Essa análise universal busca revelar Kafka como um eco inconsciente não só de si próprio em suas obras, mas da cultura de sua época histórica, bem como do romance familiar inconsciente analisado na obra de Freud, em um contexto europeu de crise, e judaico de exclusão.

Pontos chave presentes na obra de Kafka (mãe sedutora, culpa edípica, redenção pela impureza) enriquecem nossa leitura, mostrando como o inconsciente, moldado pela linguagem lacaniana, reflete épocas históricas. Essa perspectiva, profunda e multifacetada, destaca elementos que Kafka talvez não percebesse, mas que tornam sua obra com certeza, atemporal.

Diante de obras como, por exemplo, "A metamorfose" e "O processo" podemos ficar muito impressionados em ver a psicanálise de Freud (inconsciente, Édipo, superego, culpa, romance familiar, etc.) ali presente. Nas fantasias provocadas pelo inconsciente, temos o desejo de ficar com a mãe, vista como “puta” e se oferecendo para os demais homens, um pai indiferente e que parece não perceber ou não querer ver esta situação (na verdade, a relação mãe bebê ou criança filho), a enorme culpa de ceder aos caprichos eróticos da mãe. O crime cometido por todos os homens e que não pode ser dito, mas todos o sabem e ninguém é inocente (no "O processo", todos que aguardam julgamento são homens e todas as mulheres aparecem como sexualmente sedutoras, ocupando os homens o papel de filho e as mulheres o papel de mãe sedutora). A única forma de tentar se redimir é morrendo, se transformando em um ser impuro, deixando de existir.

A questão se Franz Kafka conhecia, leu ou estudou a obra de Sigmund Freud é complexa e tem sido debatida por estudiosos, já que não há evidências definitivas de uma leitura direta e profunda por parte de Kafka, mas há indícios de familiaridade com ideias psicanalíticas, especialmente dado o contexto cultural de sua época. Kafka (1883–1924) e Freud (1856–1939) foram contemporâneos, vivendo em cidades próximas (Praga e Viena, respectivamente) no Império Austro-Húngaro, um centro cultural onde as ideias psicanalíticas começaram a circular no início do século XX. A psicanálise de Freud, especialmente após a publicação de “A Interpretação dos Sonhos”, 1900, e “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, 1905, tornou-se amplamente discutida em círculos intelectuais europeus, incluindo Praga, onde Kafka frequentava cafés literários e grupos como o Círculo de Praga. Kafka faz referências indiretas a conceitos psicanalíticos em seus diários. Por exemplo, em uma entrada de 1913, após escrever “O julgamento”, 1912, ele menciona "pensamentos sobre Freud", sugerindo que estava ciente de suas ideias, mesmo que não as cite diretamente.

Não há, porém, uma citação explícita de obras específicas de Freud. Praga, na época, era um centro de debates intelectuais, e a psicanálise estava ganhando popularidade. Amigos de Kafka, como Max Brod e Otto Gross (este último, um psicanalista dissidente de Freud), discutiam ideias freudianas. Brod, em particular, era fascinado por psicanálise e provavelmente compartilhou esses conceitos com Kafka. Em cartas a amigos, como Brod e Felice Bauer, Kafka não menciona Freud diretamente, mas usa uma linguagem que ecoa temas psicanalíticos, como culpa, repressão e conflitos familiares. Por exemplo, em “Carta ao Pai”, 1919, a análise de sua relação com Hermann Kafka reflete uma introspecção que ressoa com a psicanálise, especialmente o complexo de Édipo, embora sem terminologia técnica. Não há evidências concretas de que Kafka tenha lido profundamente as obras de Freud ou as estudado formalmente. Em seus diários e cartas (publicados postumamente), não há registros de ele citando títulos específicos, como “A Interpretação dos Sonhos”, 1900, ou “Totem e Tabu”, 1913. Sua biblioteca pessoal, parcialmente documentada, não inclui livros de Freud, mas isso não é conclusivo, já que ele podia acessar textos por outros meios (ex.: bibliotecas ou amigos). Biógrafos como Reiner Stach sugerem que Kafka tinha uma familiaridade superficial com a psicanálise, absorvida pelo "ar da época" (o Zeitgeist), em vez de um estudo sistemático. Ele era cético em relação a abordagens teóricas rígidas, e sua visão da escrita como uma "oração" ou exploração espiritual indica que ele preferia uma abordagem intuitiva às questões psicológicas, distinta da metodologia científica de Freud.

Kafka conhecia a obra de Freud? Sim, ele tinha uma familiaridade superficial com as ideias de Freud, provavelmente através de conversas com amigos como Max Brod e do ambiente intelectual de Praga, mas não há prova de que tenha lido ou estudado suas obras sistematicamente. Ele leu ou estudou Freud? Não há evidências de leitura direta de textos freudianos ou estudo formal. Sua exposição à psicanálise parece ter sido indireta, absorvida pelo contexto cultural da época, com menções esparsas em diários sugerindo uma consciência básica.

Embora Kafka não tenha estudado Freud diretamente, suas obras ecoam o inconsciente cultural da Europa do início do século XX, como se ele fosse um paciente literário de Freud, traduzindo culpas edípicas e angústias coletivas em narrativas atemporais.

Interessante, portanto, que apesar de contemporâneos, parece que Kafka não conhecia a obra de Freud, no sentido de tê-la lido ou estudado. Pensando em Lacan, que argumentou que o inconsciente é estruturado em forma de linguagem, penso que certos quadros clínicos tem muito a ver com a época histórica nos quais se apresentam.

Apesar de podermos encontrar casos clínicos de histeria idênticos aos analisados por Freud nos tempos atuais, isto hoje em dia é uma raridade, o mesmo acontece com os casos de neurose obsessiva. Me parece que na medida em que um autor como Freud e seus discípulos, escreve sobre um dado comportamento humano fazendo uso da linguagem, esta obra passa a ser lida, comentada e deste modo fazendo parte integrante da cultura, alterando os comportamentos ali narrados.

Kafka poderia muito bem ser um dos pacientes de Freud e ele expressou algo presente em sua época histórica do mesmo modo que outros homens, seus contemporâneos, expressaram o mesmo no divã de Freud. Minha análise segue neste rumo.

 

4- ALGUMAS DAS PRINCIPAIS OBRAS DE FRANZ KAFKA

 

As obras são apresentadas primeiro pelas publicadas em vida, em ordem de publicação, seguidas pelas póstumas, ordenadas por data de escrita, para refletir a evolução criativa de Kafka

 

PUBLICAÇÕES EM VIDA

 

1. Die Verwandlung. Título traduzido: A Metamorfose. Escrito: 1912. Publicado: 1915.

Resumo: Gregor Samsa acorda transformado em um inseto (bicho, criatura) monstruoso (não puro) e luta para lidar com sua nova condição, enquanto sua família enfrenta dificuldades financeiras e emocionais. A obra reflete sobre identidade, dependência e a desumanização em um mundo indiferente.

2. In der Strafkolonie. Título traduzido: Na Colônia Penal. Escrito: 1914. Publicado: 1919.

Resumo: Um viajante observa uma máquina de execução em uma colônia penal, que grava a sentença no corpo do condenado. A narrativa questiona justiça, crueldade e fanatismo, culminando em um desfecho perturbador.

3. Ein Hungerkünstler. Título traduzido: Um Artista da Fome. Escrito: 1922. Publicado: 1924.

Resumo: Um artista que faz do jejum sua arte enfrenta a indiferença do público. No final, revela um segredo sobre sua prática. A obra reflete sobre arte, sofrimento e a incompreensão do indivíduo.

 

PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS

 

4. Amerika (ou Der Verschollene). Título traduzido: América (ou “O desaparecido”). Escrito: 1911–1914. Publicado: 1927 (póstumo).

Resumo: Karl Rossmann, um jovem imigrante europeu nos EUA, enfrenta desventuras em um mundo caótico após ser expulso de casa. Inacabado, o romance satiriza o sonho americano, explorando solidão e desorientação.

5. Der Prozess. Título traduzido: O Processo. Escrito: 1914–1915. Publicado: 1925 (póstumo).

Resumo: Josef K., um bancário, é acusado de um crime não especificado e enfrenta um sistema judicial opaco e burocrático. O romance explora a luta de K. para entender as acusações, mergulhando em temas de alienação, culpa e a absurdidade da burocracia em um cenário kafkiano de impotência.

6. Brief an den Vater. Título traduzido: Carta ao Pai. Escrito: 1919. Publicado: 1952 (póstumo).

Resumo: Esta longa carta autobiográfica, nunca enviada, é endereçada ao pai de Kafka, Hermann. Nela, Kafka expressa ressentimentos, medos e reflexões sobre a relação opressiva com o pai, explorando como isso moldou sua personalidade e inseguranças. É um texto íntimo que revela conflitos familiares e psicológicos.

7. Das Schloss. Título traduzido: O Castelo. Escrito: 1922. Publicado: 1926 (póstumo).

Resumo: O agrimensor K. chega a uma vila controlada por um castelo inacessível, buscando contato com as autoridades. Enfrentando barreiras burocráticas, ele nunca alcança seu objetivo. Inacabado, o romance aborda poder, exclusão e a busca por significado.

 

Silvério da Costa Oliveira.

 

Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.

Site: www.doutorsilverio.com

(Respeite os Direitos Autorais – Respeite a autoria do texto – Todo autor tem o direito de ter seu nome citado junto aos textos de sua autoria)

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