Por: Silvério da Costa Oliveira.
Nietzsche
1- A vida de Nietzsche
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) nasce em Röcken, próximo a Leipzig, Prússia (atual Alemanha), filho de Carl Ludwig Nietzsche (1813-1849) e Franziska Oehler (1826-1897), proveniente de família religiosa (o pai era pastor protestante e a mãe vinha de uma família de pastores), e falece aos 55 anos de idade (10 meses e 10 dias) em Weimar, Alemanha.
Nietzsche é o primeiro de três filhos do casal, sendo que seu irmão mais novo, Ludwig Joseph (1848-1850), faleceu quando criança, com apenas um ano e dez meses de idade, ficando somente o filósofo e sua irmã mais jovem. Seu pai falece jovem, aos 36 anos de idade, quando Nietzsche ainda era criança, com quase cinco anos de idade, e o futuro filósofo é criado em um meio familiar totalmente feminino, composto por seis mulheres (mãe, irmã mais nova, avó e três tias).
Estuda Filologia e Teologia na universidade de Bonn, matriculando-se em 1864, sendo nesta época influenciado pela leitura de Schopenhauer. Pouco depois, abandona a teologia e passa a se dedicar totalmente à Filologia, sendo que no ano de 1865 transfere seus estudos para a universidade de Leipzig. Durante o tempo de seus estudos desde 1858 e, portanto, antes de ingressar no ensino superior, Nietzsche aprendeu grego e latim.
Desde a infância, tendo um aumento por volta de seus 14 anos de idade, em 1858, ele sofria de problemas de saúde recorrentes, como dores de cabeça intensas e dificuldades visuais, que o acompanhariam por toda a vida.
Em 1865, com 21 anos de idade, conhece a filosofia de Arthur Schopenhauer (1788-1860), da qual inicialmente irá gostar muito.
Aos vinte e cinco anos de idade, em 1869, é nomeado professor de Filologia na Universidade de Basileia. Em 1868 conhece Richard Wagner (1813-1883). Trava amizade com Erwin Rohde (1845-1898) colega de curso e especialista em antiguidade grega, e Richard Wagner, músico e compositor. A amizade com Wagner irá perdurar até o seu rompimento público no ano de 1877.
Desde 1873 seu estado de saúde começa a deteriorar, apresentando fortes dores de cabeça e problemas oculares. Com o agravamento de sua doença e os sofrimentos dela decorrentes, abandona o magistério na universidade de Basileia em 1879, vindo a viver de uma pequena pensão decorrente dos dez anos nos quais trabalhou na universidade.
A partir de seu afastamento da função de professor universitário, dedica-se a viajar pela Europa, passando por várias cidades e locais na Itália, França e Suíça (Veneza, Gênova, Turim, Nice, Sils-Maria). Passou a ter um estilo de vida nômade, que o levava da Alemanha, para a Itália, França e Suíça.
No ano de 1882 trava contato e amizade com Paul Rée (1849-1901) e também com Lou Andreas-Salomé (1861-1937), a quem propõe casamento, mas esta o recusa.
Em janeiro de 1889 a vida consciente de Nietzsche chega ao final. Em 3 de janeiro cai na rua durante um passeio por Turin. Na ocasião ele viu um cavalo sendo chicoteado e se abraçou ao pescoço do cavalo. Levado ao alojamento por seu proprietário, Davide Fino, ele escreveu cartas delirantes a amigos nos dias seguintes, assinando como "Dionísio" ou "O Crucificado". Tem melhoras e recaídas. É internado em uma clínica psiquiátrica onde recebe o diagnóstico de paralisia progressiva. Em 13 de janeiro a mãe, Franziska Nietzsche, assume os cuidados do tratamento de Nietzche, função que manterá até a ocasião de sua morte, em 1897, quando então sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche (1846-1935), assumirá esta função e levará Nietzsche para Weimar, onde este ficará até 25 de agosto de 1900, quando o corpo de Nietzsche falece, já que desde seu desmaio anos antes, nunca recobrou a razão.
Sua irmã tinha vivido uma fracassada tentativa de montar com seu marido uma colônia, Nueva Germania, no Paraguai. Tanto a irmã, como seu marido, eram nacionalistas alemães e antissemitas. Ao retornar do Paraguai em 1893, ela encontra seu irmão Nietzsche aos cuidados da mãe, mas aos poucos vai assumindo o controle dos escritos do irmão, organizando os arquivos e escritos e, por vezes, entrando em conflito com a mãe. Quando a mãe falece ela assume o lugar da mesma nos cuidados de Nitzsche.
Sua doença foi atribuída à sífilis, que teria originado uma paralisia progressiva, mas hoje isto é questionado, sendo mais provável ele ter tido uma sequência de AVCs ou mesmo um tumor cerebral. Desde esta época e até sua morte ele perdeu por completo a capacidade de falar ou escrever.
Após sua morte a sua fama internacional como filósofo começou a crescer, bem como multiplicaram-se as publicações e traduções de sua obra, além de cursos dados em universidades sobre a sua filosofia.
Foram poucos os seus amigos no transcorrer de sua vida e muitos foram por um determinado período de tempo. Incluem-se aqui Friedrich Wilhelm Ritschl (1806-1876), seu professor e filólogo, que o recomendou para a universidade de Basileia e por meio do qual obteve o título de doutor honoris causa, Richard Wagner e sua esposa Cosima Francesca Gaetana Wagner (1837-1930), Lou Andreas Salomé e Paul Rée, Franz Overbeck (1837-1905) e Johann Heinrich Köselitz que adotou o pseudônimo de Peter Gast (1854-1918), sendo que estes dois últimos continuaram apoiando Nietzsche em seus últimos anos de lucidez.
Seu posicionamento é contrário às ideias antissemitas, então em voga, e a posterior associação de sua filosofia com o Nazismo se deveu a sua irmã e ao marido desta, fazendo aparentar ser Nietzsche um filósofo cujo pensamento legitimaria tais ideologias políticas, o que estava muito longe da realidade. Aliás, vinculava tanto o antissemitismo, como também o anarquismo ao ressentimento.
Durante sua vida sua obra não teve um impacto social relevante, vindo este a ser um pensador solitário, atento as suas reflexões pessoais. Seu estilo literário se dá por meio do uso de aforismos. Conjuntamente com Marx (1818-1883) e Freud (1856-1939), Nietzsche é considerado como um dos três grandes pensadores (mestres) da suspeita, que irá começar ali no século XIX e marcar profundamente o desenvolvimento do pensamento no transcorrer do século XX.
2- Vida e ascetismo (ideal ascético)
O ideal ascético mostra-se como sendo a valorização de tudo que represente a renúncia a este mundo, a negação da vida aqui na Terra, a negação dos impulsos e instintos naturais, a busca de um outro mundo, superior a este, a busca de uma outra existência, uma existência transcendente.
Sua gênese é mostrada na “Genealogia da moral”, 1887. O ascetismo surge como um consolo para os fracos diante da dor. Foi estruturado pelos sacerdotes, que transformaram o sofrimento em virtude, e exaltando a humildade, pobreza e castidade. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência dos fracos, que preferem querer o nada a nada querer.
O ideal ascético é, em essência, a negação da vida. É a desvalorização do mundo sensível. Está vinculado ao ressentimento, à fraqueza e à moral dos escravos. A promessa de um “além” é uma ilusão e negar este mundo por uma fantasia é uma covardia.
A filosofia de Nietzsche é uma constante afirmação da vida e simultaneamente crítica e negação a todas as doutrinas que, mesmo que de modo mascarado, negam a vida. Ao afirmar a vida, ele o faz aqui e agora onde a vida de fato existe, e não como o quer a religião, em um além vida, algo idealizado que em tudo reproduza a vida, como uma promessa imaginária de algo melhor após a morte, desde claro está, que a pessoa não afirme sua verdadeira vida. Entende que a vontade de verdade, presente na filosofia e nas ciências desde Sócrates, é em essência a negação desta mesma vida. A moral cristã também se insere entre os negadores da vida.
Cabe aceitar e afirmar a vida, mesmo na dor e no sofrimento, pois, a vida deve ser a superação do homem pelo próprio homem, trata-se da autossuperação que se dá por meio da transformação de todos os valores humanos adotados hoje nesta sociedade. Os atuais valores cultuam a morte, a morte em vida, o niilismo, o ascetismo, não é isto que devemos buscar ou viver, devemos sim cultuar valores que dignifiquem e valorizem a vida em toda a sua expressão e pujança.
3- Ideal religioso
Este ponto é detalhado e desenvolvido inicialmente no livro “A genealogia da moral”, 1887, mas está presente em toda a obra de Nietzche, como cabe citar: “Assim falou Zaratustra”, 1883-1885, Além do Bem e do Mal, 1886, “O anticristo”, 1888.
Em Nietzsche temos uma total rejeição e crítica ao ideal religioso. Esta crítica está presente em toda a sua obra, mas em particular podemos destacar “O anticristo” e “Assim falou Zaratustra”, dentre outras obras relevantes.
O ideal religioso é uma manifestação específica do ideal ascético, mas com algumas diferenças sutis. Ambos negam a vida terrena, valorizam a renúncia e prometem um “mundo superior”. Temos no ascetismo a prática e na religião a sustentação por meio da narrativa. Mas há diferenças. O ideal religioso depende da existência de um deus ou de um dogma, já o ascetismo pode ser secular, como no caso da filosofia de Arthur Schopenhauer. Em Nietzsche o cristianismo é entendido como sendo o ascetismo levado ao extremo teológico. Temos em “O anticristo” que o ideal ascético fornece ao humano um sentido para a sua existência, mesmo que errado, já o ideal religioso, por sua vez, se apresenta em contraparte como o motor narrativo deste mesmo erro.
O ideal religioso foi uma invenção dos fracos para poderem justificar a sua própria impotência. Foi criada e perpetuada pelos sacerdotes e pelos dogmas que trouxeram para a humanidade a constante culpa e negação da vida. Se mostrou como uma das maiores barreiras diante da afirmação da vida.
Aqui Nietzche faz referência ao conjunto de valores, crenças e práticas que tem por objetivo por sob tutela de uma entidade transcendente ilusória a existência humana. É onde surge o mundo superior ou a existência de Deus. É onde é negada a vida aqui na Terra e nossos mais básicos instintos e impulsos. O ideal ascético encontra-se na base das religiões teístas, tais como o budismo, mas especialmente o cristianismo. Também presente na filosofia de Platão. O ideal se faz presente ao privilegiar um “além” em detrimento de um “aqui e agora”. Em verdade, trata-se de um modo específico de ideal ascético, com ênfase na fé em um Deus que pode julgar, e redimindo os pecados ou condenando. Toda a vitalidade humana é subordinada a uma ilusória realidade metafísica.
O ideal religioso é dependente de uma narrativa teológica comprometida com a promessa de salvação, a culpa pelo pecado e a submissão a uma autoridade sobrenatural. É a mentira sagrada que desvaloriza a existência concreta em nome de uma pura ilusão consoladora.
Sua origem e gênese encontra-se na reação ao sofrimento diante da incapacidade de lidar com a dor e o caos da vida. Aqueles que não suportam a total ausência de sentido e a brutalidade presente na vida neste mundo são tidos por Nietzsche como sendo fracos, e cabe a estes inventar um deus que proporcione sentido e propósito ao sofrimento, que passa a ser entendido como sendo um teste ou mesmo castigo divino.
Quando Nietzsche fala em “sacerdotes”, tem em mente, em particular, líderes religiosos judaico-cristãos. Para Nietzsche, são estes os verdadeiros criadores do ideal religioso. Coube ao judaísmo propor a obediência a um único deus e ao cristianismo universalizar a moral dos escravos, estabelecendo, ambos, a dominância do ideal religioso em todo o mundo ocidental. O sacerdote é aquele que usa a culpa e o medo com o objetivo de controlar os seus fiéis, fornecendo em troca da submissão, a promessa da redenção.
O ideal religioso mostra-se como a expressão do ressentimento dos que se veem como oprimidos diante dos fortes. Coube aos escravos inverter a moral. Se antes os valores nobres e naturais positivos eram a força, beleza e poder, agora estes valores passam a ser vistos como “pecados” e os valores que anteriormente eram negativos, agora são exaltados como sendo virtudes, tal é o caso da fraqueza, da humildade e da piedade.
Em Nietzsche o cristianismo surge como sendo o ápice deste ideal, mas o mesmo também se encontra presente em outras religiões e mesmo, filosofias. A estrutura é sempre a mesma, temos de um lado um “mundo verdadeiro” e do outro lado o mundo sensível. Aqui entra o budismo e o platonismo.
Suas críticas se direcionam a destacar que o ideal religioso representa a negação da verdadeira e única vida, que é esta que temos neste mundo sensível no qual vivemos aqui e agora. Esta negação da vida se faz ao afirmar a existência de um “além vida” fictício. Há uma troca da verdadeira e concreta existência e vitalidade, por uma mera promessa vazia.
Este mesmo ideal religioso impõe a moral do rebanho, uma moral universal que a todos nivela, negando as individualidades. É a moral dos escravos, que suprime a singularidade e a força, priorizando a obediência a deus e não dando espaço para a criação autônoma de valores.
As pessoas podem acreditar que deus está morto e terem perdido a credibilidade em sua fé religiosa, mas mesmo assim o ideal religioso persiste nos nossos dias atuais como um resquício niilista que busca se prender a um “nada” transcendente.
Nietzsche entende o cristianismo como sendo um instrumento de poder usado pelos sacerdotes, uma verdadeira conspiração contra a vida real que temos aqui na Terra. Os sacerdotes buscam explorar a fraqueza humana e, deste modo, exercerem poder e dominância sobre as pessoas. O cristianismo transforma fiéis em vítimas voluntárias diante do carrasco e da repressão.
Este ideal religioso traz a culpa para dentro de esferas normais e naturais, tais como a sexualidade, o orgulho e o poder, enfraquecendo a vida, enfraquecendo a vontade de potência. É um sintoma de decadência que nos diz que a humanidade está doente. Neste sentido, a religião cristã, grande representante deste ideal religioso, não passa de “platonismo para o povo”, ou seja, uma simplificação de uma filosofia sofisticada e destinada a erudidos, agora direcionada para os fracos enquanto mero consolo de uma existência não vivida. A impotência é transformada em virtude divina.
A crítica desenvolvida por Nietzsche ao ideal religioso se encaminha para a morte de deus, que este entende como sendo um evento cultural, que cabe celebrar e lamentar. Celebrar porque a perda da fé liberta a humanidade para que esta possa criar seus próprios valores, para que esta possa rejeitar os ideais ascéticos e religiosos. Lamentar porque sem deus temos o avançar incessante do niilismo, que antes era retido pelo ideal religioso. Era justamente o ideal religioso que dava sentido a vida dos fracos. O desafio se encontra justamente em poder superar a religião e a constatação de que deus está morto, sem cair no niilismo, no vazio total.
A religião se mostra como falsa, uma mentira destrutiva, um obstáculo à vida humana. Cabe à humanidade superar esta fase, abraçando a vida aqui e agora nesta terra e a criação autônoma do sentido para a mesma. Enquanto o ideal religioso nega a vida, a filosofia de Nietzsche afirma esta mesma vida. A origem do ideal ascético encontra-se junto ao ressentimento e aos sacerdotes. Trata-se de algo falso, da negação da vida.
4- A moral do nobre e do escravo
Aqui temos a distinção entre o que seja “bom” em oposição ao que seja “mau” ou “ruim”, que passa a ser trocada pela oposição entre “bem” e “mal”, ganhando uma conotação metafísica. Os dois tipos fundamentais de moral existentes são analisados por Nietzsche em “Genealogia da Moral”, 1887, e em outras obras. Temos a moral dos nobres associada aos fortes, poderosos e aristocratas, e temos a moral dos escravos, associada aos fracos, oprimidos ou subalternos. A primeira se mostra como uma moral afirmativa e a segunda como uma moral reativa, que surge do ressentimento.
Esta divisão reflete maneiras opostas de avaliar e viver a vida, tendo suas bases na história, sociologia e psicologia dos povos. A moral dos nobres surge em culturas guerreiras e aristocráticas pré-cristãs, já a moral dos escravos surge a partir de uma revolta dos que se consideram oprimidos, contra estes mesmos valores tidos pelos dominantes.
Encontramos os nobres entre culturas antigas, como os gregos e os romanos e temos como exemplo personagens tais como Aquiles e César. Já os escravos se fazem mais presentes no judaísmo e cristianismo, sendo que estes não possuem o poder físico ou social para impor suas vontades. Sua arma é o ressentimento, invertendo os valores. Os fracos transformam sua impotência em virtude e condenam a potência dos fortes como sendo pecado.
Para o nobre a moral pode ser apresentada como: bom = nobre = belo = feliz = amado pelos deuses. A moral do escravo, por sua vez, se apresenta como sendo: bom = miserável = pobre = necessitado = impotentes = baixos = sofredor = doente = disforme. A moral do escravo diz que os nobres com os seus valores são: poderosos, malvados, cruéis, lúbricos, insaciáveis, ímpios.
A moral dos fortes é historicamente algo do passado, anterior à vitória do ideal religioso e do ideal ascético. A moral cristã se apresenta como sendo a moral dos escravos e cabe ao além do homem a substituir pela moral dos senhores, ou melhor ainda, superar a ambas. A moral dos escravos se baseia na humildade, na compaixão e na gentileza, valores que segundo Nietzsche foram criados por pessoas fracas visando se protegerem e ao mesmo tempo justificarem sua existência e mediocridade. Tal moral nega a vida e a vitalidade, buscando e acatando a submissão e a conformidade. Já a moral dos senhores valoriza justamente o oposto de tudo isto. Aqui temos a força, o poder e a ambição. A moral dos senhores é uma moral afirmativa que celebra o vigor e a capacidade de criar seus próprios valores. A moral dos senhores é a moral dos fortes, que são capazes de definir suas próprias regras e viver de acordo com sua vontade.
Os valores principais presentes na moral dos escravos são a humildade, compaixão e submissão. Sua origem ocorre entre as pessoas fracas e oprimidas, tendo como objetivo a proteção e a justificação de sua existência e sendo caracterizada pela negação da própria vida.
Já a moral dos senhores se baseia na força, no poder e na ambição, tendo sua origem junto aos fortes e dominantes. O objetivo desta moral é a afirmação da vida e criação dos próprios valores, celebrando e afirmando o vigor da vida.
5- Deus está morto
"Deus está morto" (Gott ist tot) é uma das frases mais famosas de Nietzsche, introduzida pela primeira vez em A Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft, 1882), no aforismo 125, "O Homem Louco". Nietzsche escreve: "Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos!" A voz do "homem louco" proclama essa ruptura em um mercado onde as pessoas riem, incrédulas, sem compreender a gravidade do evento. O louco buscando deus com a lanterna de dia e depois entrando na igreja. Deus está morto e fomos nós que o matamos. Embora o conceito apareça antes em A Gaia Ciência, ele é ampliado em Assim Falou Zaratustra (1883–1885), onde figuras como o "Último Papa" e o "Homem mais Feio" simbolizam as consequências dessa morte.
A afirmação sobre a morte de deus é uma ideia muito importante dentro da filosofia elaborada por Nietzsche e surge pela primeira vez em “Gaia ciência”. Não somente deus está morto, mas com ele se vai também todo um modelo teórico que começa no Ocidente com Sócrates e prossegue até os nossos dias. Trata-se da negação do modelo filosófico que busca igualar a verdade a virtude e esta ao belo. Este modelo foi inicialmente proposto por Sócrates e seu discípulo Platão, tendo influenciado toda a filosofia subsequente, a ciência e a religião cristã. Deus estar morto representa, portanto, o fim de um período histórico. Não cabe mais dividir a realidade em dois mundos, segmentando-a. É falsa a divisão entre um mundo transcendente, este verdadeiro, e um mundo imanente, humano, material e falso. Não cabe mais tudo explicar por meio de uma revelação divina. É sair da Antiguidade pós Sócrates e da Idade Média, se encontrando com o humano Moderno, com uma nova forma de pensar e agir que retira deus do centro do universo e coloca o humano neste mesmo lugar. Mas substituir a fé em deus pela fé na ciência não resolve o problema, apenas muda de nome, mas continuamos diante da vontade de verdade, que afirma ser esta melhor que falsidade.
Nietzsche nos propõe não somente uma afirmação sobre um dado evento, no caso, a frase “deus está morto” aponta também para o fim de toda uma Era baseada na metafísica e o início de uma nova era, baseada em nossa existência. A morte de deus é algo ambíguo, pois, por um lado nos acena com o perigo do niilismo e por outro lado, com a promessa de liberdade para criar. Se deus morre, com ele vai também o ideal religioso e isto deixa um vazio que deverá ser preenchido. Cabe aqui o surgimento do além do homem visando reavaliar e criar novos valores.
6- O niilismo
Em A Gaia Ciência (aforismo 125), o homem louco pergunta: "Para onde vamos agora? Não estamos caindo continuamente?" - refletindo o desamparo existencial. Sem deus, já que este está morto, e sem verdades absolutas, qual o sentido da vida? Eis a crise que se instala. A moral do escravo depende de um mundo transcendente e da existência de deus, sem o qual torna-se insustentável. Já os fortes podem ver o niilismo ativo como um martelo que tudo destrói, abrindo novos caminhos que possam levar a afirmação da vida. Agora, se o niilismo passivo permanecer a humanidade pode cair em profunda mediocridade, desespero e incapacidade de criar algo novo. O niilismo tende a se apresentar como sendo a sombra projetada pela morte de deus.
Podemos falar em dois tipos distintos de niilismo, o passivo e o ativo. O niilismo passivo também pode ser chamado de niilismo da fraqueza ou niilismo negativo. Se mostra como sendo o desespero diante do vazio provocado pela morte de deus, afinal, se deus está morto, qual o sentido para tudo e porque viver? Esta forma de niilismo pode levar as pessoas à apatia, ao hedonismo e ao conformismo. Já o niilismo ativo, que também pode ser chamado de niilismo da força ou niilismo positivo, mostra-se como sendo a destruição consciente dos antigos valores, abrindo deste modo espaço para a construção de novos valores. Neste caso, o niilismo destrutivo mostra-se como um ato da vontade de potência. O niilismo ativo faz parte de uma necessária transição até a chegada do além do homem. O niilismo passivo é uma doença e como tal deve ser superada, já o niilismo ativo faz parte de um estágio criativo, mas que também deverá ser superado pelo além do homem.
O niilismo presente na nossa atual sociedade mostra-se como um vazio, ou melhor, a busca pelo nada. Mesmo para aqueles que viam no ideal religioso e no ideal ascético a solução para o nada presente no niilismo, este agora também se faz presente, já que deus morreu e com ele também o ideal religioso e tudo o mais que dava sentido a existência de tais pessoas: deus, alma imortal, moral transcendente, verdade absoluta, etc. Tais valores se desvalorizam e perdem força diante da morte de deus e do fim do ideal religioso presente na nossa atual sociedade. Este colapso de todas as fundações metafísicas da cultura ocidental deixa parte da humanidade sem um “porque” ou um “para que”. Menos do que uma crença pessoal, o niilismo se apresenta como um evento histórico de grandes proporções.
Vamos entender bem que o que Nietzsche faz é um diagnóstico social sobre o niilismo, mas que ele próprio não é um niilista. Nietzsche busca transcender todo tipo de niilismo. Nietzsche não é um filósofo niilista, mas justamente o contrário, já que este combate o niilismo, que é a vontade de buscar o nada, de negar a vida e o corpo. Nietzsche nega e critica tudo que contrarie a vida e, neste sentido, os defensores destes diversos setores, que os vêem como a própria vida e sem os quais a vida perde todo o sentido e significado, o veem como um niilista, já que negaria o que para eles é a própria vida. Esta visão é errada. Segundo Nietzsche a busca pela verdade acima de tudo, a moral cristã, as religiões e em particular o cristianismo, a filosofia e as ciências a partir de Sócrates, a ideia de um mundo pós-morte ou de um deus cristão ou mesmo concepções religiosas orientais, tais como o budismo, tendem a negar a verdadeira vida, que é esta que vivemos agora e única existente. Há também Nietzsche de criticar e negar as práticas ascéticas, tão comuns nas religiões, sejam as orientais ou o cristianismo. Não há como ferir o corpo e lhe negar o prazer que este busca, isto é negar a verdadeira expressão da vida.
O niilismo se apresenta como sendo a negação da vida e a busca de uma outra vida após a morte, algo falso. Trata-se da negação do corpo e da vida em troca do ideal ascético. Por niilismo pode se entender uma doutrina cuja principal ênfase se dá na abordagem cética, no ceticismo radical e também em uma atitude pessimista diante da realidade. O ceticismo atua aniquilando valores e convicções, trazendo perda do sentido, significado e finalidade diante de questões existenciais. Esta definição de niilismo faz com que alguns erroneamente confundam o pensamento de Nietzsche com um pensamento niilista, mas é justamente o oposto que está aqui presente.
Nietzsche valoriza extremante a vida e para tal, busca a desconstrução de todos os valores que a denigrem, sendo estes mesmos valores defendidos por muitos como sendo a própria vida, o que Nietzsche deixa claro que não é, trata-se de algo falso, de uma mentira. A vida é esta aqui que vivemos agora e não algo outro que ocorrerá em outro mundo e tempo, após nossa morte. É preciso valorizar a vida e esta é o oposto de questões além vida, de questões sobrenaturais e inexistentes.
7- A transmutação de todos os valores
A transmutação de todos os valores, tema central na obra de Nietzsche, representa um novo começo, após o niilismo destrutivo. Busca-se reverter o niilismo e criar novos valores, valores estes que afirmem a vida. Deus está morto e os valores religiosos são rejeitados. Há uma rejeição do ideal ascético, do ideal religioso, da moral do escravo e tudo isto a favor de uma nova moral, uma que seja afirmativa da vida, da terra e da vontade de potência.
Os antigos mais altos valores da humanidade perderam o seu sentido e aqui me refiro a: deus, verdade absoluta, moral cristã. Torna-se necessário que haja uma transmutação destes valores, recriando-os a partir de uma perspectiva vitalista, livre de ilusões metafísicas. Nietzsche escreve em Além do Bem e do Mal (1886): "Precisamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deve ser posto em questão."
A morte de deus e o niilismo trouxeram a perda da fé cristã e o descrédito para com o ideal religioso. Este novo estado de coisas presentes na cultura ocidental afetaram os valores tradicionais, tais como a bondade cristã e a humildade. O novo passo a ser dado é construir valores novos dos destroços dos antigos.
Durante muito tempo a humanidade foi vítima de uma doença que precisava em algum momento ser curada. Esta doença é a vitória da moral do escravo sobre a moral do nobre, invertendo todos os valores e passando a exaltar a fraqueza como sendo uma virtude. Mas o ideal religioso sucumbiu e com ele também o ideal ascético. Não cabe mais negar a vida e a transmutação de todos os valores se propõe justamente a substituir esta negação por uma afirmação plena da existência humana.
Há aqui um caminho percorrido pela humanidade, começando pelo niilismo passivo, que nos traz o desespero, seguindo pelo niilismo ativo, que nos traz a destruição, e se encaminhando para a criação de novos valores que enalteçam a vida e não o nada. Cabe à transmutação vir a superar o niilismo, criando novos valores a partir da vontade e não pela aceitação de dogmas.
O processo tem início pela crítica dos valores antigos. Cabe questionar os fundamentos da moral cristã, que se encontram junto ao ideal religioso e ao ideal ascético. Para derrubar tais valores é preciso perceber que os mesmos são o inverso de tudo o que é natural. Aqui há de entrar a filosofia do martelo, com a destruição de todos os ídolos: deus, moral do escravo, metafísica platônica. Somente após esta etapa de destruição é que o além do homem irá surgir como o criador de uma moral afirmativa que se sustenta na fidelidade à terra, no amor fati e na aceitação plena do eterno retorno. O além do homem há de celebrar valores que enalteçam a vida sem sua totalidade. Não há uma tábua de valores. Cabe tudo avaliar por meio da vontade de potencia e rejeitar o que venha a negar ou enfraquecer a vida.
Estes novos valores deverão afirmar a vida, sendo inspirados na antiga moral dos nobres e exaltando a força, a criatividade, a independência e os instintos. Sem culpa ou ressentimento. Estes novos valores deverão se posicionar de modo imanente diante do mundo, rejeitando uma transcendência que remeta a deus, à eternidade ou a um mundo superior. Estes novos valores devem ser singulares, individuais, não universais. Se opondo à moral do rebanho, cada ser deve ter a força para criar e assumir seus próprios valores. Estes novos valores devem trazer a vitalidade do deus Dionísio, celebrando a embriaguez, a dança e a aceitação do trágico.
Deste modo, se sai dos valores presentes na moral do escravo, humildade, piedade, e também do ideal ascético, renúncia, transmutando o nada (niilismo) em afirmação. A transmutação de todos os valores é o antídoto para o niilismo deixado pela morte de deus, transformando o “nada” em um “tudo” afirmativo. Também temos a superação do cristianismo, sendo a destruição final da moral cristã. Abre-se um espaço para a autonomia humana, pois, sem deus ou qualquer absoluto, cabe ao humano se tornar deus, criando seu próprio sentido para a vida. Mas é preciso coragem para superar o desafio, para enfrentar os riscos, se por diante do abismo e criar sem qualquer garantia.
8- O além do homem (super homem) – Übermensch
Alguns traduziram a expressão alemã usada por Nietzsche, Übermensch, como sendo “super-homem”, no entanto, isto não se mostra correto, dando a entender uma super valorização do humano contemporâneo a Nietzsche, enquanto o que o filósofo prega é justamente o oposto, a destruição deste humano. "Super-homem" (Superman em inglês) pode evocar uma imagem pop, como o herói de quadrinhos, e carrega uma conotação de superioridade física ou heroísmo que não reflete plenamente o conceito de Nietzsche. Übermensch vem de über (além, acima) e Mensch (homem), sugerindo uma superação existencial e criativa, não apenas uma versão "melhorada" do homem atual.
A melhor tradução para o português encontra-se em “além do homem”, dando a entender esta superação do atual humano, que é deixado para trás na história para dar lugar a um outro, que não vive por valores ascéticos ou cristãos e sim que cria seus próprios valores ao afirmar a vida. É uma escolha mais fiel ao sentido filosófico, sugerindo uma transcendência do humano atual, um estado de autossuperação e criação de valores, sem necessariamente implicar uma figura sobre-humana no sentido literal.
O além do homem há de ocupar o seu lugar nesta Terra, por meio da ação e da liberdade, estabelecendo seus próprios valores por meio de sua vontade de potência e atuando para transvaloração de todos os atuais valores existentes, sempre buscando a superação e a criação.
Ao defender a individualidade do além do homem, se posiciona contrário a ideologias que defendam o igualitarismo entre todos os humanos, como tal é o caso do comunismo, do socialismo, da democracia, do feminismo, etc. Estas ideias estariam associadas a decadência do humano, ao domínio dos escravos sobre o mestre.
Nietzsche busca por meio deste conceito expressar a necessidade da superação do humano de seu tempo. É necessário que venha alguém que se oponha aos valores niilistas hoje presentes na sociedade e que crie seus próprios valores. Que valorize o corpo e a vida, ao contrário do comum nos dias atuais, que se consolida pela negação da vida e do corpo em prol de querer o nada, aliás, o humano antes há de querer o nada, a nada querer.
Nietzsche relativiza valores socialmente considerados absolutos, como tal é o caso das ideias de bem, mal, verdade, justiça, virtude e deus, dentre outras. A busca da verdade, e mais ainda, igualar a verdade a virtude e ao belo, está vinculada ao niilismo. O deus que Nietzsche mais ataca é o Deus judaico/cristão, se bem que também questione o niilismo e ascetismo presente em outras religiões, tais como o budismo.
Übermensch, o além do homem, representa não somente a superação do homem individual, mas da própria humanidade. O conceito foi introduzido em Assim Falou Zaratustra (1883–1885), e nele temos aquele que consegue transcender a condição atual da humanidade, superando o niilismo reinante, o ideal religioso, o ideal ascético e a moral do escravo. Com tais superações, passa a criar novos valores, valores que afirmem a vida em toda sua plenitude. Nietzsche escreve no Prólogo de Zaratustra: "O homem é algo que deve ser superado. O que fizestes para superá-lo? [...] O homem é uma corda esticada entre o animal e o Übermensch — uma corda sobre um abismo."
Após a morte de deus e o niilismo daí decorrente pela perda dos valores transcendentais presentes na moral do escravo, a humanidade se vê diante do nada, do vazio, caberá ao além do homem preencher este vazio com valores por ele mesmo criados, rejeitando o desespero presente nos “últimos homens”.
Cabe ao além do homem romper com a submissão a deus e a culpa, resgatando a autonomia humana presente na moral do nobre, mas também superando-a. O além do homem há de superar a moral do escravo, o ideal religioso e o ideal ascético. Não cabe mais a moral cristã e sim uma nova moral a ser criada.
O além do homem se apresenta como o verdadeiro agente da transmutação de todos os valores, aquele que destrói os velhos ídolos e cria novos valores vinculados à expressão plena da vida na terra. Na visão de Nietzsche o além do homem não é apresentado como um estado final já alcançado e sim como um horizonte para onde nos direcionamos, trata-se de um ideal que desafia a evolução da humanidade. Menos que uma receita, o além do homem se mostra como um símbolo, mas que possui algumas características principais: criador de valores; afirmação da vida; autonomia e força; vitalidade dionisíaca; superação do humano atual.
O além do homem não deve ser interpretado, como o quiseram os nazistas, como algo a semelhança de um ditador ou um ser biologicamente superior. Trata-se de um humano que encarna em si a máxima expressão da vontade de potência criativa.
O além do homem ocupa um papel central na obra filosófica de Nietzsche. Após a morte de deus e o niilismo resultante, cabe ao além do homem a superação deste vazio, criando um novo sentido para a vida, sem absolutos e sem a presença de algo transcendente ou metafísico. Segundo Nietzsche, o além do homem surge quase que imediatamente do niilismo provocado pela morte de deus. Ao afirmar a vida terrena, destrói os ideais ascéticos e religiosos, sendo o executor da transmutação de todos os valores. O além do homem faz parte da evolução humana. Em Zaratustra, o homem é uma "ponte" entre o animal (instinto puro) e o Übermensch (consciência criativa). Cabe um teste existencial, pois, o além do homem é aquele que vivencia o amor fati, é aquele que aceita o eterno retorno, afirmando com alegria e expressando sua força.
9- O eterno retorno
A ideia do eterno retorno do mesmo, exatamente igual em tudo e na mesma ordem, sejam prazeres ou dores sofridos, veio a Nietzsche de modo repentino, como uma súbita inspiração, em agosto de 1881, estando em Sils-Maria. É na obra “Gaia ciência” que este conceito surge e é abordado pela primeira vez. Já na obra “Zaratustra” ele surge como o clímax deste trabalho. Cabe aqui a menção da história do pastor sufocado pela serpente que lhe entrou na boca enquanto este dormia. A serpente representa o peso do tempo. Quando o pastor morde a cabeça da serpente e a cospe, seguindo-se a rir, temos um símbolo da aceitação do eterno retorno.
Esta eterna recorrência afirma que tudo o que ocorre irá ocorrer novamente um número infinito de vezes em um tempo infinito. Se o levarmos para o campo moral, de nosso comportamento diante de nós mesmos e dos outros, cabe refletir a respeito para sabermos se de fato queremos ou não que o que fazemos hoje continue eternamente se repetindo, infinitamente em sucessivas vidas. É preciso, portanto, afirmar a vida de tal modo que a aceitamos enquanto destino, que a queiramos sempre igual, que não tenhamos medo de viver novamente o igual que agora vivemos.
O eterno retorno em Nietzsche se apresenta como sendo simultaneamente uma hipótese cosmológica e um teste existencial para o além do homem. Estamos diante não mais de um tempo linear, como o que ocorre na tradição judaico-cristã e sim de um tempo cíclico. De modo infinito, todos os eventos de nossas vidas se repetirão, exatamente como da primeira vez. Ao entender ser isto de fato verdade e não uma mera hipótese ou um “como se” presente em um imperativo categórico kantiano, a pessoa diria “sim” ou entraria em total desespero?
Diante da veracidade desta hipótese científica e filosófica, a pessoa afirmaria a vida e toda a sua totalidade, sem rejeitar parte alguma? Este é um teste real e definitivo diante do amor fati (amor ao destino) e da força presente no além do homem.
Suas origens se encontram entre os pensadores pré-socráticos e nas cosmologias antigas, temas estes estudados pelo filólogo Nietzsche. Também há na obra de Nietzsche especulações com base na ciência de sua época. Se tudo é finito, incluso recursos e estados possíveis da matéria, mas o tempo é infinito, há a necessidade de em algum momento termos um recomeço.
Com a morte de deus e o niilismo daí resultante, tendo colapsado todos os valores da moral dos escravos e vinculados a um elemento transcendente, a alternativa à promessa de salvação dada pela religião se encontra no eterno retorno, pois, sem a possibilidade de um “além”, a vida deve ser afirmada aqui e agora para todo o sempre. Nietzsche entende que tal pensamento, uma vez devidamente compreendido em toda a sua inteireza, há de separar os fracos dos fortes, já que os primeiros irão rejeitar e os segundos abraçar tal pensamento. Diante do eterno retorno, cada escolha que fazemos ganha um novo peso e significado em nossas vidas.
O eterno retorno preenche o vazio deixado pela morte de deus e propõe no lugar de um sentido transcendente para a vida, um sentido totalmente imanente. Se apresenta como uma resposta ao niilismo, transformando o desespero dos fracos em afirmação dos fortes. É o teste para o além do homem, quem suporta e ama o eterno retorno. O eterno retorno faz parte do processo de transmutação de todos os valores, pois, sua existência exige valores que possam resistir a uma eterna repetição. Diante da moral do nobre e do escravo, o eterno retorno faz eco a moral do nobre, ao afirmar a vida e rejeitar a fuga dos escravos. O eterno retorno é o “pensamento mais pesado” de Nietzsche. Tal ideia desafia a todos nós a nos colocar diante da vida sem qualquer ilusão de salvação. Força-nos a perguntar se queremos de novo e de novo esta mesma vida, para sempre. Sendo este o teste supremo para o além do homem diante do amor fati e a pedra angular da transmutação dos valores. Deus e o mundo transcendente prometiam conforto, o eterno retorno não, sua promessa é de “força”. Diante do eterno retorno o além do homem há de afirmar a vida em totalidade e dançar com o caos e o destino com alegria. Segundo Nietzsche esta ideia separa os fracos que a ela sucumbem, dos fortes que com ela se elevam.
10- Vontade de potência
Em Nietzsche a vontade de potência se apresenta como sendo o motor da vida, conceito central e unificador de sua filosofia. É a força primordial que impulsiona toda a existência (humana, natural, cósmica). Não se mostra como um mero desejo de poder político ou físico, não se trata de querer a dominação de outras pessoas. A vontade de potência é energia criativa, expansiva e afirmativa. A vontade de potência busca superar as resistências, crescer e se expressar. A vontade de potência não almeja somente existir, mas crescer, transformar e criar, sendo o fundamento de todos os valores, ações e fenômenos.
O conceito de “vontade de “potência” em suas origens no pensamento de Nietzsche ecoa seus estudos iniciais em Schopenhauer, que nos fala em vontade e representação, e nos filósofos pré-socráticos, em particular na ideia de fluxo presente em Heráclito. A vontade de potência ecoa uma percepção do cosmos como algo vivo e dinâmico.
Segundo o filósofo, onde exista uma criatura viva, existirá também a vontade de potência. A vida é a manifestação da vontade de potência e se mostra como uma luta incessante, um embate de forças, um conflito eterno, a criação e a aniquilação constantes. Tudo que existe se apresenta como um somatório de forças que ora se repelem e ora se atraem. Tudo em última instância é fruto da vontade de potência. As forças existentes são ativas ou reativas, e sempre cabe a possibilidade de um aumento ou diminuição da potência diante da harmonia e caos presente na manifestação desta vontade de potência. Estas forças também se mostram como dentro de um contexto dionisíaco ou apolíneo, fazendo aqui referência a dois deuses gregos, Dionísio e Apolo, e a todo o simbolismo que os mesmos carregam dentro da expressão artística e criativa.
A vontade de potência é a base imanente que Nietzche usa para substituir todos os absolutos e transcendentes perdidos com a morte de deus e o niilismo subsequente, sendo um princípio universal presente em toda a natureza, sendo uma ideia multifacetada e complexa. A vontade de potência atua como força criativa, estando presente na arte, nos valores e mesmo no prazer e sofrimento. Cabe à vontade de potência interpretar, organizar e dar forma. A vontade de potência é superação e expansão, buscando superar os obstáculos, sejam estes internos ou externos. A vontade de potência está em tudo, sendo universal. Mesmo o niilismo se mostra como uma forma distorcida da vontade de potência. Ela está presente nos humanos, nos demais animais, nas plantas, na natureza. As plantas crescem, os animais lutam por alimento e território e o humano a tem no poder, amor e conhecimento. A vontade de potência não se mostra como sendo uma força única e sim uma pluralidade, um conjunto de vontades em conflito. A vontade de potência é afirmativa, sempre diz “sim” a vida, mesmo diante da dor, do sofrimento, da tragédia.
Todos os valores humanos são expressão da vontade de potência. Os valores dos nobres a canalizam para sua afirmação e os valores dos escravos a direcionam para o ressentimento, invertendo-a.
Por meio da vontade de potência temos uma resposta para o vazio presente no niilismo decorrente da morte de deus, sendo esta um fundamento imanente para a transmutação de todos os valores. Cabe ao além do homem maximizar a vontade de potência, criando por meio dela novos valores que afirmem a vida e, também, aceitando o eterno retorno.
O mundo não “é”, ele “se torna” diante de um eterno “devir” presente na vontade de potência, que contrasta com o deus transcendente, a substância e o “ser” estático presente desde Parmênides. Com a vontade de potência temos uma rejeição da metafísica. Tudo presente no real (natureza, ciência, arte, moral) é uma perspectiva da vontade de potência. Trata-se de conceito fundamental dentro da filosofia de Nietzsche, estando presente de modo explícito ou implícito em várias de suas obras.
11- Dionísio e Apolo
Em seu livro “O nascimento da tragédia” (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik), primeira obra por ele publicada, ainda em 1872, sob clara influência do Romantismo, assume uma interpretação da cultura grega clássica a partir de dois modelos: Dionísio e Apolo. Ambos se mostram como impulsos contrários entre si.
Em Dionísio temos a exacerbação dos sentidos, a embriaguez extática e mística, a amoralidade, a sensualidade. Dionísio se apresenta como o deus do vinho, da dança e da música. Claro que Nietzsche não está preocupado com o culto religioso a Dionísio e sim como este se apresenta na arte, em particular a música. Ainda pensando na manifestação artística, temos que o tipo apolínio, ao contrário do dionisíaco, se vincula à perfeição, à forma, à medida exata, às ações e palavras humanas, ao pensamento (logos). Temos esta expressão artística bem presente nas esculturas do período. A tragédia grega em toda a sua vitalidade tem seu surgimento unido a estes dois impulsos. Segundo o filósofo, é a partir de Sócrates que o humano começa a adoecer, ao substituir o Dionisíaco pelo apolíneo, negando o trágico a favor do racional. E este adoecimento que começa com Sócrates, prossegue com seu discípulo Platão e é herdado por toda a tradição cristã.
Apolo é o deus grego da luz, da ordem, da razão, da forma, simbolizando harmonia, clareza, medida, imagens belas e controladas. Apolo é o princípio de individuação, separação e definição do “eu”.
Dionísio é o deus do vinho, da embriaguez, do êxtase, do caos, representando a força da vida, a dissolução dos limites, a fusão com o todo, a embriaguez. Dionísio é o contrário do princípio de individuação, é a perda da individualidade na unidade cósmica.
O tipo apolíneo e o tipo dionisíaco possuem cada qual atributos próprios, como é o caso em Apolo da presença da lucidez, harmonia e ordem, enquanto em Dionísio encontramos a embriaguez, a exuberância e a desordem.
Com Dionísio e Apolo encontramos a dualidade, tanto na vida, como na arte. Nietzsche apresenta Dionísio e Apolo como princípios estéticos e existenciais para explicar a essência da arte grega e mesmo, de toda a vida humana. Estes dois princípios representam duas forças opostas e complementares que moldam toda a cultura, criação e experiência humana. A tragédia grega nasce do confronto entre estes dois impulsos (Dionísio e Apolo), de modo a enfrentarem o drama da existência com a arte e não com a negação.
Na tragédia grega Apolo dá forma ao drama por meio da narrativa e dos personagens, enquanto Dionísio surge no coro, na dança, na música, expressando o sofrimento e a exaltação da vida.
A dualidade da vida é revelada pela tensão existente entre Apolo e Dionísio, dois tipos que surgem na fundação estética e existencial da filosofia de Nietzsche, trazendo consigo a dualidade da vida: caos e ordem. Em sua origem na tragédia grega estes dois tipos se uniram para afirmar a existência sem negá-la. A vida inclui ambos os tipos, uma dualidade sempre presente.
Segundo o pensamento de Nietzsche a arte deve sua existência justamente a esta tensão entre os tipos apolíneo e dionisíaco. Este equilíbrio entre os dois tipos pode ser observado nas tragédias apresentadas por Ésquilo e Sófocles, trata-se de uma síntese entre a ordem e o caos. Na tragédia grega estes princípios se encontram em equilíbrio até um determinado momento histórico, quando, então, o tipo apolíneo tende a prevalecer. Com o advento da filosofia de Sócrates e sua influência sobre as artes gregas, este equilíbrio é quebrado, passando a haver um predomínio de Apolo em detrimento de Dionísio.
Nos trabalhos iniciais de Nietzsche a arte, em particular o teatro trágico grego, aparece como o meio para justificar a existência frente ao sofrimento e como uma alternativa para o ascetismo cristão. Podemos ver em Dionísio o que mais tarde na obra de Nietzsche este entenderá como sendo a vontade de potência, uma força vital que pode criar e destruir. Na cultura ocidental pós Sócrates, houve uma perda deste equilíbrio entre o apolíneo e o dionisíaco, priorizando-se o tipo apolíneo, como observamos no emprego da razão na filosofia e ciências. O além do homem há de encarnar o espírito dionisíaco diante do caos, mas sua autonomia traz elementos de Apolo em sua forma criativa.
No decorrer da elaboração de sua obra filosófica, Nietzsche há de favorecer o tipo dionisíaco, colocando-o como a essência da vida e da vontade de potência, sem, no entanto, abandonar a ideia inicial desta dualidade.
O tipo dionisíaco é a expressão bruta da vontade de potência, já o tipo apolíneo é aquele que organiza as formas, seja na arte ou nos valores. A aceitação do eterno retorno é um “sim” ao caos da vida dado por Dionísio, mas precisa de Apolo com sua clareza para ser realmente compreendido. O além do homem mostra-se dionisíaco em vitalidade, e apolíneo em capacidade de criar e estruturar novos valores. O equilíbrio e síntese entre ambos os tipos se mostra como uma resposta ao niilismo e a aceitação de uma vida sem deus, realidade transcendente e absolutos. O cristianismo com seu ideal religioso e ideal ascético, rejeita o tipo dionisíaco e perverte o tipo apolíneo.
12- Perspectivismo
Há um relativismo presente na obra filosófica de Nietzsche, já que toda percepção que possamos ter, e também todo pensamento que possamos desenvolver, se dá diante de um determinado e específico lugar que nos fornece uma dada perspectiva diante dos fatos observados e dos pensamentos pensados, podendo ser esta perspectiva alterável, deste modo, mesmo existindo uma única realidade, cada indivíduo a percebe de modo distinto e variável.
A verdade não deve ser entendida como sendo algo absoluto e sim como dentro de uma dada perspectiva. Não existem verdades absolutas ou objetivas, apenas interpretações oriundas de específicas perspectivas. Não há uma realidade que seja independente do observador. Todo e qualquer conhecimento, valor e percepção da realidade é decorrente dos interesses, experiências e vontades daquele que o formula. Não há fatos objetivos, apenas interpretações. Tudo se dá a partir do ponto de vista de quem observa, tudo é perspectiva. Não se trata aqui de um relativismo simples e sim de uma visão dinâmica na qual a verdade é uma construção da vontade de potência, tendo sua validade decorrente da força, da utilidade e da perspectiva que a sustenta. Trata-se de radical crítica à metafísica e à pretensão de universalidade.
Nietzsche assume uma postura filosófica contrária às filosofias de Platão e Kant, dentre outros filósofos, bem como contrária ao cristianismo. Não existiria um mundo verdadeiro em oposição a um mundo falso. Este mundo verdadeiro composto por ideias perfeitas, coisa-em-si, deus, não passa de ilusão. Só o que existe é o mundo sensível e nada mais. Foram os fracos que criaram esta divisão entre o mundo sensível e um além do mundo. Só nos é possível conhecer o mundo por meio de nossa subjetividade.
O conhecimento é relativo ao observador. Textos e culturas podem ser interpretados de distintos modos. O perspectivismo é uma consequência natural da morte de deus e o fim de todos os absolutos. Se não há deus ou qualquer mundo transcendente, então, este mundo sensível, único que existe, é composto por uma multiplicidade de interpretações. Cada nova perspectiva é uma expressão da vontade de potência, sendo uma força que molda o mundo conforme seus próprios interesses.
A verdade não é una e absoluta, ela se apresenta como sendo uma pluralidade. Não existe uma verdade que seja objetiva, pois, cada animal e cultura vê o mundo do seu próprio ângulo. Mesmo valores morais variam entre nobres e escravos. Entre animais, o que é “bom” para um lobo é “mau” para um cordeiro, mas ambas as perspectivas são corretas e válidas dentro de seus respectivos contextos.
Há no perspectivismo uma rejeição da objetividade do conhecimento. Não há neutralidade na ciência, moral e filosofia, somente perspectivas distintas mascaradas pela ilusão. Mesmo a razão humana é um instrumento da vontade de potência, não um acesso superior a uma dada realidade absoluta.
A “verdade” é o que funciona e fortalece a vida e não o que possa corresponder a uma dada realidade externa. Uma perspectiva mais forte há de prevalecer sobre uma mais fraca, como no caso do além do homem prevalecendo sobre o último dos homens.
O perspectivismo abre espaço para a criatividade, liberdade para o humano criar os seus próprios valores. Neste sentido atua a par com a transmutação de todos os valores. Não há um dever ser moral universal como proposto por Kant. Não é que Nietzsche negue a ideia de verdade, mas sim que ele a redefina enquanto produto da vida e não como um fim em si mesma.
Com o perspectivo temos o fim da metafísica, acabando com a ideia de “um mundo verdadeiro” e afirmando que só existe este mundo dos sentidos e das perspectivas, o mundo do “devir”. Temos a relativização da moral, na qual surgem a moral do nobre e do escravo como perspectivas opostas e não verdades absolutas. A origem do perspectivo encontra-se na afirmação criativa da vontade de potência.
Com a morte de deus e o niilismo daí resultante, não é mais possível falar de uma verdade única e absoluta, mas sim da possibilidade de criarmos múltiplas verdades. O além do homem assume o perspectivismo. O além do homem cria perspectivas que valorizem e afirmem a vida. O perspectivismo desafia cada humano dentro da humanidade a abandonar a busca por certezas e verdades absolutas. Na tragédia grega, por exemplo, os tipos apolíneo e dionisíaco refletem perspectivas sobre a vida, não uma verdade que seja algo fixo e imutável. Cada nova perspectiva atua como uma força que interpreta o mundo. Trata-se de uma superação do niilismo, pois, transforma o “não há verdades” em “há muitas verdades”. As melhores perspectivas são aquelas que venham a afirmar a existência em toda a sua totalidade caótica e simultaneamente bela.
13- O camelo, o leão e a criança
O estágio do camelo é quando o espírito carrega fardos pesados, submetendo-se de modo obediente aos deveres e as tradições, dentro de uma passiva aceitação da moral tradicional.
O estágio do leão é quando o espírito se rebela, destrói os valores antigos com força e coragem. Aqui temos a negação e a conquista da autonomia.
O estágio da criança é quando o espírito cria novos valores a partir de uma situação de inocência e espontaneidade, simbolizando a afirmação plena da vida e o início de algo novo.
As três metamorfoses do espírito se apresentam como uma jornada de libertação da submissão em busca da criação de seus próprios valores. Temos a aceitação, a destruição e a criação.
O camelo é um animal forte, mas submisso. No caso humano, está vinculado ao “dever” presentes na moral do escravo, no ideal religioso e no ideal ascético. O camelo ajoelha-se para melhor poder receber a sua carga, pesados fardos, nos quais temos a culpa presente no cristianismo e os deveres para com a sociedade. O camelo suporta com respeito religioso todos estes fardos. É a humanidade em seus estágios iniciais, obediente a deus e as tradições, ou mesmo a razão como autoridade absoluta. O camelo se apresenta como sendo o “espírito de gravidade”, que Zaratustra quer superar. Aqui temos o bom fiel, judeu ou cristão, que segue em sua vida os dez mandamentos dado por deus, temos também a figura do filósofo que busca e aceita para si verdades eternas, absolutas.
O Leão é um animal feroz, forte, independente. No caso humano ele afirma veementemente “não” ao “tu deves”. Ele ruge contra o dragão chamado “tu deves”, revestido por valores antigos presentes na moral cristã e na metafísica dos filósofos. O “tu deves” é o dragão do ideal ascético e do ideal religioso. O leão enfrenta o dragão e a criança o supera com o “eu quero”. O leão consegue conquistar a sua liberdade destruindo os valores reinantes, mas não é capaz de criar algo novo. Após a morte de deus, o leão surge como sendo o niilismo ativo, o espírito rebelde que tudo rejeita, que não aceita a submissão. Aqui temos a força e a autonomia, mas não a plenitude. Vemos tipos tais como o ateu que derruba todo o edifício de deus, ou o revolucionário que destrói o que considera sistemas político-econômicos opressores.
A criança é inocente, gosta de brincar e é muito criativa. A criança diz “sim” a vida e esquece do passado inventando tudo novo com total espontaneidade. A criança cria novos valores, não carrega fardos pesados, mas também não perde seu tempo destruindo estes mesmos fardos, somente brinca e joga criando sempre. A criança é o além do homem em sua essência. Nela temos o ápice da transmutação de todos os valores e o amor fati ao eterno retorno, afirmando a vida aqui e agora, sem qualquer ressentimento. São crianças o artista e também o filósofo que criam uma nova visão do mundo, livre de dogmas ou verdades absolutas.
Estas três metamorfoses tem uma finalidade. Elas se apresentam como libertação, como resposta ao niilismo, como o caminho que leva ao além do homem, como uma transformação existencial.
A libertação ocorre por tais metamorfoses delinearem o caminho que vai da submissão presente no camelo, à autonomia presente no leão, até a criação presente na criança. A criança se apresenta então como o além do homem que há de atuar na transmutação de todos os valores, superando os valores dados pela tradição e criando novos valores, que enalteçam a vida em sua totalidade afirmativa.
A resposta ao niilismo ocorre quando após a morte de deus, o niilismo se instala na sociedade trazendo consigo o vazio existencial. O camelo aceita o passado, as tradições, já o leão atua destruindo tudo e a criança construindo novos valores para um novo futuro.
Caminho ao Übermensch, o além do homem, surge quando, após passarmos pela fase do camelo e do leão, chegamos finalmente na fase da criança, na qual a vontade de potência torna-se totalmente criativa, se brinca com o caos e nas cinzas da tradição se cria novos valores.
A transformação existencial se dá como um convite feito a cada pessoa para que esta passe pelas três etapas aqui descritas, de modo a rejeitar a moral tradicional do escravo e abraçar e afirmar a vida no que esta tenha de prazer e dor.
Não se trata de uma sucessão histórica e universal, mas sim de um processo interno individual que os espíritos fortes devem empreender em busca de superar o “espírito da gravidade”.
O camelo nos traz a moral do escravo, o ideal religioso e o ideal ascético, marcando a vida pela opressão imposta pelos deveres, já o leão destrói estes valores tradicionais e a criança por sua vez, os transcende e nisto temos por parte da filosofia de Nietzsche uma crítica à moral tradicional. A aceitação presente no camelo, a destruição presente no leão e a criação presente na criança nos mostram o processo no qual ocorre a transmutação de todos os valores. Cada estágio nos traz uma perspectiva diferente e única sobre a vida, que vai da submissão do camelo, da rebelião do leão até a invenção criativa da criança, apresentando o espírito em toda a sua pluralidade e perspectiva. Tanto no estágio do camelo, como no do leão, como no da criança, temos a manifestação da vontade de potência, seja como obediência, destruição ou criação. Somente a criança pode afirmar o eterno retorno, pois possui inocência para dizer “sim” a vida sem qualquer tipo de rancor. Cabe a criança ser como Dionísio e rir, jogar, dançar diante do caos. O estágio da criança se torna implícito diante do além do homem e do amor fati que este demonstra diante do eterno retorno, afirmando a vida incondicionalmente.
O camelo pode ser entendido como sendo a humanidade aceitando a moral do escravo, já o leão é aquele que se assume como um niilista ativo, destruindo todos os valores, deixando para a criança o papel da superação e criação de novos valores. Os espíritos livres são a um tempo leões enquanto destroem valores e tradições, e crianças que criam novas perspectivas.
14- Amor fati
O conceito de amor fati aparece nas obras mais maduras de Nietzsche, quando este de afasta da influência de Schopenhauer e do Romantismo de Wagner. Se mostra como sendo uma síntese do eterno retorno com a vontade de potência. O amor fati é um ideal a ser alcançado pelos fortes e não pelos fracos. É preciso primeiro afirmar a vida e rejeitar qualquer culpa ou ressentimento. Trata-se de algo à semelhança de uma ética pessoa e universal, que não faz uso de desculpas ou justificativas, como, por exemplo: “Ah, se ao menos...”.
Aqui temos uma expressão latina usada por Nietzsche que significa “amor ao destino”. Nietzsche argumenta que cabe ao além do homem afirmar a vida em sua totalidade, amando o destino que lhe foi reservado. Trata-se da aceitação radical e com alegria, de toda a vida que se vive. Isto significa aceitar o prazer, as alegrias, os sucessos, mas também a dor, os sofrimentos e os fracassos, sem desejar que coisa alguma fosse diferente. Trata-se de um sonoro “sim” incondicional para a existência, sem tentativas de fuga ou ressentimentos. Não é uma postura passiva, e sim ativa diante da vida. O amor fati se dá como uma afirmação da vida para com a vontade de potência. Trata-se do oposto do ideal religioso e do ideal ascético, já que estes rejeitam a vida em prol de uma outra vida, em um além mundo.
O amor fati pode ser entendido como uma resposta ao niilismo que ocorre após a morte de deus, uma alternativa ao desespero ou a negação da vida. No lugar de se lamentar pela vida que tem e pela que desejaria ter, afirmar aqui e agora o que é. Vemos também uma certa influência do estoicismo, já que estes pregavam a aceitação do inevitável. Mas em Nietzsche o amor fati não se apresenta como uma mera tolerância e sim como algo ativo. O amor fati traz também uma crítica ao cristianismo, já que se mostra contrário ao ideal religioso e ao ideal ascético que entendem o sofrimento como algo a ser superado pela salvação. O amor fati abraça e aceita incondicionalmente e de modo afirmativo o sofrimento como sendo parte essencial da vida.
Pelo amor fati a pessoa ama cada detalhe de sua vida como sendo algo necessário e belo. Aqui se inclui o que seja bom, mas também o que seja mau, o que seja excepcional, mas também o que seja trivial. É querer que a vida seja assim, eternamente igual e sempre assim, como dito por Zaratustra. Não é meramente aceitar o destino como o querem os estoicos, mas deseja-lo de modo apaixonado.
O amor fati, do mesmo modo que o eterno retorno, se mostra como um teste de força para o além do homem, que deve responder afirmativamente quando lá no amago de seu ser brotar a pergunta sobre este querer viver a vida infinita vezes, exatamente igual todas as vezes e sempre a amando.
Enquanto a moral do escravo e o ressentimento culpam o mundo por todo o sofrimento, lamentando a vida que tem e desejando que a mesma fosse diferente, o amor fati se apresenta como um antídoto a esta negação, pois, afirma a vida como ela de fato é. O amor fati encontra a beleza presente no trágico trazido por Dionísio. A beleza também está presente no caos e na dor. O trágico pode tudo transformar em algo sublime. O amor fati é o máximo da sabedoria, amar o inevitável não por mera obrigação, mas por escolha própria.
Como consequências do amor fati temo a superação do niilismo, já que após a queda de todos os absolutos e transcendentes, o amor fati nos traz um “sim” a vida, ultrapassando o vazio deixado pelo niilismo ativo e se colocando a par com a transmutação de todos os valores. Se apresenta como sendo a rejeição do ideal religioso, pois, no lugar da promessa do cristianismo de um “além”, reforça a terra aqui e agora.
O amor fati mostra-se como sendo vontade de potência, amar o destino é afirma-lo com toda força criativa presente no além do homem, que vive sem arrependimentos criando seus próprios valores e assumindo o que de fato é. Se entendermos o eterno retorno como um teste, então a resposta será o amor fati, o amor ao destino que faz com que a repetição eterna seja uma constante alegria. É o além do homem, a fórmula de Nietzsche para a grandeza, não querer nada diferente, nem para o futuro, nem para o passado, nem em toda a eternidade, este é o amor fati. Pelo amor fati o eterno retorno não é entendido como sendo um fardo ou maldição e sim uma bênção. O além do homem vive o amor fati, já que afirma constantemente e de modo incondicional a vida que vive.
O amor fati se mostra como sendo a expressão máxima da vontade de potência, já que transforma o destino em uma potência criativa. Quando se ama o que é, pode-se criar novos valores, logo, o amor fati faz parte da transmutação de todos os valores. Desde a morte de deus e o subsequente niilismo, o amor fati tem o papel de substituir a antiga salvação prometida pela religião, em uma ética a ser vivida única e exclusivamente aqui e agora na terra. O amor fati supera o niilismo e encontra a beleza no inevitável trazido pelo destino. Temos também a presença de Dionísio e Apolo. Dionísio se faz presente diante do amor ao caos presente no amor fati, já Apolo se faz presente quando percebemos a beleza que emerge deste caos.
No amor fati temos um amor incondicional ao destino, de modo a desejarmos viver a mesma vida e não outra, eternamente. Estamos em um momento posterior a morte de deus e o niilismo decorrente deste fato, cabe ao amor fati rejeitar a negação provinda do ideal ascético e também rejeitar a culpa provinda do cristianismo, no seu lugar, o amor fati nos traz uma nova ética, uma ética pautada na força e na alegria. O amor fati se vincula ao eterno retorno e ao além do homem, sendo um “sim” final para toda a existência, marca da grandeza presente nos fortes que amam a vida tal como ela é.
ALGUMAS DE SUAS PRINCIPAIS OBRAS
1- A Origem da Tragédia. Título original: Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik. Ano: 1872.
Primeira obra publicada de Nietzsche, explora o nascimento da tragédia grega a partir da tensão entre os princípios apolíneo (ordem, razão) e dionisíaco (caos, paixão), defendendo a arte como uma forma de afirmar a vida. Influenciada por Schopenhauer e Wagner, reflete seu entusiasmo inicial por ambos.
2- Humano, Demasiado Humano. Título original: Menschliches, Allzumenschliches: Ein Buch für freie Geister. Ano: 1878.
Marca a ruptura com Wagner e Schopenhauer, adotando um tom mais racional e cético. Composto por aforismos, critica a metafísica, a moral tradicional e a religião, propondo uma visão psicológica e secular da humanidade.
3- O Viandante e sua Sombra. Título original: Der Wanderer und sein Schatten. Ano: 1879.
Publicado como suplemento de Humano, Demasiado Humano, é uma coleção de aforismos que explora a autonomia individual, o autoconhecimento e a rejeição de preconceitos. O "viandante" e sua "sombra" simbolizam o diálogo entre o eu consciente e seus aspectos ocultos.
4- Aurora. Título original: Morgenröte: Gedanken über die moralischen Vorurteile. Ano: 1881.
Continuação do estilo aforístico, foca na crítica aos preconceitos morais e à moral cristã, sugerindo que os valores tradicionais são construções históricas a serem superadas. Prepara o terreno para ideias posteriores como o eterno retorno.
5- A Gaia Ciência. Título original: Die fröhliche Wissenschaft. Ano: 1882 (primeira edição; ampliada em 1887).
Introduz o conceito "Deus está morto" (no aforismo do "homem louco") e o eterno retorno. Combina poesia e prosa para celebrar a vida, a ciência e a liberdade intelectual, rejeitando o niilismo passivo.
6- Assim Falou Zaratustra. Título original: Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen. Ano: 1883–1885 (publicado em partes: I e II em 1883, III em 1884, IV em 1885).
Obra central e mais poética, narra as reflexões de Zaratustra sobre o Übermensch (além do homem), o eterno retorno e a morte de Deus. É um chamado à superação do homem e à criação de novos valores.
7- Além do Bem e do Mal. Título original: Jenseits von Gut und Böse: Vorspiel einer Philosophie der Zukunft. Ano: 1886.
Uma crítica radical à moralidade tradicional, à filosofia sistemática e à democracia. Explora a "vontade de potência" e defende uma ética aristocrática para os "espíritos livres" que moldarão o futuro.
8- Genealogia da Moral. Título original: Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift. Ano: 1887.
Em três ensaios, analisa a origem histórica dos valores morais, distinguindo a moral de "senhores" (força, afirmação) da moral de "escravos" (ressentimento, fraqueza), criticando o cristianismo e o ideal ascético.
9- O Caso Wagner. Título original: Der Fall Wagner: Ein Musikanten-Problem. Ano: 1888.
Um ataque pessoal e filosófico a Richard Wagner, que Nietzsche antes admirava. Critica o romantismo, a decadência e o cristianismo implícito na música de Wagner, defendendo uma arte mais vitalista.
10- O Anticristo. Título original: Der Antichrist: Fluch auf das Christentum. Ano: 1888. (publicado em 1895).
Escrito em 1888, mas publicado postumamente, é uma crítica feroz ao cristianismo, que Nietzsche chama de "maldição" à humanidade. Contrapõe os valores cristãos à vitalidade pagã e ao amor fati.
11- Ecce Homo. Título original: Ecce Homo: Wie man wird, was man ist. Ano: 1888 (publicado em 1908).
Autobiografia filosófica escrita pouco antes de seu colapso. Nietzsche reflete sobre sua vida, obras e missão, com um tom provocador e auto proclamatório, como "sou um destino".
12- Vontade de Potência. Título original: Der Wille zur Macht. Ano: 1901 (primeira edição póstuma; notas compiladas entre 1883–1888).
Não é uma obra concluída por Nietzsche, mas uma coleção de notas do Nachlass (manuscritos inéditos) editada por sua irmã, Elisabeth. Explora a "vontade de potência" como força motriz da vida, mas sua autenticidade é debatida devido às edições feitas por Elisabeth.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
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