OLIVEIRA, Silvério da Costa. Kantismo no Brasil: Tobias Barreto. In: OLIVEIRA, Silvério da Costa. Reflexões filosóficas: Uma pequena introdução à filosofia. 4. ed. rev. Rio de Janeiro: [s.n.], 2006. 293p. Disponível em:
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Centro de Teologia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Strictu Sensu
Mestrado
Mestrando: Paulo Sérgio de Faria
Título: Kant no Brasil: Apresentação e análise da história do pensamento kantiano no Brasil no século XIX
Curitiba, 2007
Disponível em: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=949
Páginas: 10-11
Ciente do contexto histórico e filosófico do Brasil, o terceiro capítulo se desenvolverá apresentando o pensamento de intelectuais brasileiros (Gláucio Veiga, Silvério da Costa Oliveira, Daniel Omar Perez, Eugênio de Andrada Egas, João Cruz Costa, Antônio Paim, Miguel Reale, Jorge Jaime), que estudaram ou ainda estudam aqui a presença do pensamento kantiano, embora não sejam especialistas no estudo das influências da Filosofia de Immanuel Kant no Brasil do século XIX, com suas convicções e reflexões a respeito do tema. Isso fornecerá instrumentos para uma releitura dos escritos de padre Diogo Antonio Feijó, mormente os Cadernos de Filosofia, bem como de alguns escritos de Tobias Barreto.
3.1.2 Silvério da Costa Oliveira
Em sua obra intitulada Reflexões filosóficas, Silvério da Costa Oliveira discorre sobre o tema do Kantismo no Brasil, focalizando o estudo nas obras de Tobias Barreto. Após justificar a importância e a atualidade de Immanuel Kant, seja numa abordagem gnosiológica ou ética, para os tempos atuais, inicia seus questionamentos sobre o porquê da doutrina kantiana se fazer presente na formação cultural de nossos pensadores. Independentemente da qualidade interpretativa dos textos, Silvério da Costa Oliveira admite sua presença no trato com questões de cunho nacional, sendo esse o objetivo do trabalho. Dá voz preferencialmente a um de seus interpretadores, Tobias Barreto (1839-1889) – precursor da corrente Culturalista, que se solidificou após o amadurecimento das idéias denominadas “Escola do Recife” – padre Diogo Antonio Feijó e Miguel Reale.
Trata-se, para Oliveira, de um kantismo instrumental, fruto do momento histórico pelo qual passava o Brasil. Os pontos comuns entre o momento histórico europeu, de modo especial o francês, e o momento histórico brasileiro contribuíram para a adesão às idéias do pensador de Königsberg. Assim se expressa Oliveira:
Decerto, uma das maiores figuras do Iluminismo na Alemanha, no final do século XVIII, é Immanuel Kant (1724-1804). Kant, no entanto, não teve, no início, a devida compreensão e entendimento de sua obra por parte de seus contemporâneos. Em parte isto se deve a um conjunto de fatores, como a novidade e complexidade de sua obra, o momento histórico, a presença historicamente muito próxima de outros grandes nomes da Filosofia que atraíam para si as atenções como “continuadores” e construidores do sistema de Kant, a saber, Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854) e Hegel(1770-1831), dentre outros. A ênfase que Kant dava a alguns fatores, como a liberdade, fizeram-no granjear a fama de liberal, o que, de certa forma, favoreceu o aparecimento de um interesse por sua obra fora de sua terra natal. O Liberalismo e a Filosofia de Kant criaram o hábito de aparecerem conjuntamente nos diversos países, tal foi o caso da França que, ao que tudo indica, se viu atraída pelo filósofo dito “liberal”. Ora, tal interesse motivou a escritores a escreverem sobre Kant, divulgando sua obra, como no caso de PHILOSOPHIE DE KANT OU PRÍNCIPES FONDAMENTAUX DE LA PHILOSOPHIE TRANSCENDENTALE, 1801, de Charles Viller (OLIVEIRA, 2006, p. 02).
Alguns escritores franceses, conforme informa Oliveira, aproveitaram-se do tema liberdade, tratado por Immanuel Kant, e o associaram a suas reivindicações, como é o caso de Charles Viller. E apesar de suas idéias aparecerem um tanto deturpadas, admite-se que os interesses por suas obras foram além das fronteiras da pequena Königsberg.
O padre Diogo Antônio Feijó (1784 -1843) é, tanto para o Oliveira quanto para Antonio Paim e Miguel Reale, quem primeiro introduziu o pensamento kantiano no Brasil, num primeiro momento; já num segundo momento, Tobias Barreto e a Escola do Recife; e, num terceiro, após II Guerra Mundial, deu-se prosseguimento às reflexões identificadas como neokantistas. Se existe um pensamento filosófico brasileiro original, Silvério da Costa Oliveira não coloca em discussão, mas tem a certeza da presença de um pensar literário e político, que influenciaram a prática social brasileira mantendo ou modificando determinada realidade. E mais especificamente afirma:
Admitindo-se a existência de uma literatura de características nacionais, devemos constatar a presença de várias figuras do pensamento filosófico e científico nesta mesma literatura, tal é o caso, por exemplo, de Immanoel Kant, o qual esteve presente nesta literatura e desempenhou, por vezes, papel político não pequeno, seja na presença de ideais liberais ou na luta contra concepções positivistas (Comte, Litré), importadas da França, e que mais tarde se mesclariam em definitivo com nossos hábitos políticos e culturais, em especial a partir das contribuições de Júlio de Castilhos (1860-1903) (OLIVEIRA, 2006, p. 3).
Ora, ao se escrever sobre determinada Filosofia, faz-se necessário descobrir suas origens e contribuições, bem como os motivos históricos e literários, por que que a trouxeram, descobrir quando e por que se deu e qual o desenvolvimento dela associado à nossa cultura, para que não se perca de vista os valores culturais e contribuições dentro dos limites auto-impostos por eles (OLIVEIRA, 2006, p. 3).
Levanta-se novamente a questão do momento histórico como uma das chaves de compreensão da presença do pensamento kantiano no Brasil. Para Silvério da Costa Oliveira não é possível a compreensão de um pensamento estrangeiro no Brasil sem considerar o momento histórico pelo qual passamos. Não se trata apenas da pessoa de Tobias Barreto, mas também do padre Diogo Antônio Feijó que, por seus Cadernos de filosofia, trazia em germe as idéias de Immanuel Kant.
Os Cadernos de filosofia do padre Diogo Antônio Feijó foram, sem dúvida, para Miguel Reale e Oliveira, o principal documento da segunda década do século XIX. É uma interpretação deturpada, ótica esta não exclusiva de nossos poucos letrados e pensadores brasileiros. Quanto à interpretação do padre Diogo Antonio Feijó, Silvério da Costa Oliveira descreve:
Em Feijó, vemos uma troca preferencial da antiga Escolástica pela teoria kantiana e já nele estão presentes as três perguntas cruciais do filósofo de Königsberg (Crítica da Razão Pura pág. 639, A805 B833) 1o O que posso saber?; 2o O que devo fazer?; 3o O que me é permitido esperar? Também estão presentes as categorias de Kant, no lugar das de Aristóteles, se bem que o seu sentido não tenha sido factualmente apreendido e compreendido. Nas questões éticas e morais, no entanto, há um afastamento literal entre Feijó e Kant. Frisemos mais uma vez que o importante é a presença de Kant, o que denota o interesse nutrido por nossos pensadores em época tão matutina e não as possíveis e reais deturpações e incompreensões que o pensamento de Kant tenha sofrido no percurso desta viagem até a chegada em nossa “literatura nacional” (OLIVEIRA, 2006, p. 04).
Tratando-se de padre Diogo Antonio Feijó, Oliveira, da mesma forma que Antonio Paim e Miguel Reale, considera uma presença do pensamento kantiano nos Cadernos de filosofia. É deturpada pelas dificuldades apresentadas na interpretação do autor, proveniente do seu modo de estruturar suas idéias, associada às dificuldades de compreensão da própria língua alemã. Padre Diogo Antonio Feijó traz, nos seus Cadernos de filosofia, as primeiras perguntas contidas à página 639 da Crítica da razão pura: 1- que posso saber? 2- que devo fazer? 3- que me é permitido esperar? Bem como as categorias kantianas no lugar das categorias metafísicas, além de distanciar-se de Immanuel Kant no que toca a questões éticas e morais. Resta saber se, de fato, essas observações são verdadeiras, após a leitura e relação entre os escritos de Immanuel Kant e os Cadernos de filosofia.
Verifica-se também que não existe preocupação por parte de Silvério da Costa Oliveira com a qualidade da interpretação dos textos e sim com a presença dos textos. No entanto, se a apresentação do pensamento é deturpada, como pode ser considerado portador de indícios de um pensamento kantiano alguém que, de fato, independentemente da razão, não compreendeu o pensamento de Immanuel Kant?
O segundo momento da presença do pensamento kantiano no Brasil, segundo Oliveira, acontece a partir daquilo que a Escola do Recife representa, independentemente de uma interpretação correta ou não do pensamento de Immanuel Kant.
A Escola de Recife deve ser vista como um movimento iniciado por Tobias Barreto e que teve, dentre outros continuadores a: José da Pereira Graça Aranha, Artur Orlando, Clovis Beviláqua, Sílvio Romero e Virgílio de Sá Pereira. Não há um pensamento único e sim uma multiplicidade de desenvolvimentos e idéias, que, no entanto, parecem ter um núcleo comum em sua oposição ao dogmatismo do Positivismo e na aceitação parcial de uma Metafísica, que era inteiramente negada pelos positivistas e defendida por Barreto dentro de determinados parâmetros que Kant anteriormente havia assentado para a mesma (OLIVEIRA, 2006, p. 4).
A apreciação de Silvério da Costa Oliveira, seja do pensamento do padre Diogo Antonio Feijó, seja daquele de Tobias Barreto, sempre está relacionada à apresentação da história da filosofia no seu sentido horizontal. Na citação anterior, por exemplo, o kantismo, representado pela Escola de Recife, é apresentado como força contrária ao Positivismo de Augusto Comte.
Em uma das obras de Tobias Barreto, intitulada Deve a metafísica ser dada como morta? (1875), faz-se uma relação entre a metafísica dogmática pregada pela escolástica e a compreensão crítica de Immanuel Kant. Em 1883, apenas seis anos antes de falecer (1889), em 1883, Tobias Barreto toma conhecimento de Immanuel Kant, ficando difícil prever as conseqüências de uma relação mais aprofundada com os textos. O que se pode notar é que Tobias Barreto se entusiasma mais com a visão neokantiana da Filosofia, compreendida como epistemologia e não tanto como síntese, interpretação defendida por Artur Orlando (OLIVEIRA, 2006, p. 04).
Para Oliveira, a própria Escola do Recife traz diferentes compreensões da filosofia: Tobias Barreto a compreende como epistemologia, enquanto Artur Orlando a compreende como síntese. Eis outro risco que se corre quando as fontes são indiretas.
Marcada por períodos, a vida de Barreto, segundo Oliveira, aproximou-se das mais variadas teorias como o Ecletismo e o Espiritualismo (de Cousin), e parcialmente do Positivismo, do Monismo de Haeckel, para aproximar-se mais tarde, nos últimos anos de vida, de Immanuel Kant, na defesa da liberdade humana sem excluir certo grau de Determinismo, a partir dos textos de Ludwig Noiré (1829- 1889). Independentemente da qualidade da tradução dos textos de Noiré, não se pode negar a simpatia de Barreto por eles, a fim de reforçar a oposição ao pensamento positivista no Brasil em seus aspectos mais radicais e dogmáticos. E tal aproximação assim é narrada:
Barreto toma contacto mais profundo com Kant por volta de 1886 por intermédio dos escritos de Noiré e passa a substituir a Haeckel por Kant na sua crítica aos excessos do Positivismo e defesa da Filosofia e Metafísica dentro de limites, os quais afastavam o delírio dos metafísicos dogmáticos e ao mesmo tempo defendiam contra os positivistas a existência de uma Metafísica dos fundamentos epistemológicos das ciências e que subjaz em cada hipótese dita científica. Uma metafísica dentro dos limites kantianos e que bem poderia ser chamada de meta-empiria (OLIVEIRA, 2006, p. 05).
Interroga-se, porém: como pôde Tobias Barreto ter um contato mais profundo com Immanuel Kant, por intermédio de Noiré? O contato mais profundo só poderia ocorrer com o próprio texto de Immanuel Kant e não com um de seus divulgadores. Clara, porém, permanece a opção de Tobias Barreto pelo pensamento kantiano contra as idéias positivistas que negavam fundamento metafísico para a compreensão da realidade. Verifica-se que a interpretação que deram aos motivos nacionais apresenta o padre Diogo Antonio Feijó e Tobias Barreto como protagonistas de dois momentos do pensamento de Immanuel Kant no século XIX. O filósofo alemão é interpretado por pensadores franceses com deturpações, para depois ser “compreendido” pelas demais nações, que possuíam em comum a busca pelos fundamentos de um pensamento liberal.
O Immanuel Kant do padre Diogo Antonio Feijó insere-se num momento histórico de profunda crise da Filosofia e do sistema ético e político, baseados na Escolástica. Esta crise, no tocante à península Ibérica, se dá, como vemos, em período tardio. Também de acordo com Antonio Paim, em História das idéias filosóficas no Brasil, p. 343, devemos destacar que existe uma insatisfação com o Empirismo Mitigado a que tinha sido reduzido o pensamento de Antonio Genovesi na metrópole portuguesa e no Brasil. As categorias de Aristóteles são substituídas pelas de Immanuel Kant e passam a representar momentos do saber. Apesar das deturpações impostas, a presença de Immanuel Kant tende a motivar o afastamento da Escolástica e a aproximação das idéias liberais (OLIVEIRA, 2006, p. 7).
Tratando-se de Tobias Barreto, assinala o autor:
...o problema é outro, não se trata mais de acalentar idéias liberais ou de propiciar um afastamento da tradição escolástica em crise tardia na Península Ibérica e Brasil. Para Barreto, o problema é lutar contra uma Metafísica Dogmática empunhada pelo Ecletismo Espiritualista (Cousin) e defender a realidade e existência da Filosofia e da Metafísica Crítica... Barreto entende a Metafísica como dividida em duas, uma mais do que refutada que seria a Metafísica Dogmática, a qual havia sido refutada por Hume, Kant e Comte, e uma outra, que seria uma metafísica Crítica, ou meta-empiria, e que teria sido delineada pelo próprio Kant. Na verdade, todas as afirmações, teorias e hipóteses científicas possuem em certo grau toques de metafísica. Barreto, já numa última fase, caminha a par com Kant no sentido de ver a Filosofia como uma Epistemologia (OLIVEIRA, 2006, p. 7).
Pressupõe-se que a questão kantiana relativa aos escritos do padre Diogo Antonio Feijó se resume na substituição de uma escolástica decadente por um pensamento kantiano mais em conformidade com o momento histórico, enquanto que Tobias Barreto é diferente, porque ele luta contra a Metafísica Dogmática, empunhada pelo Ecletismo Espiritualista de Victor Cousin e a favor de uma Metafísica Crítica, segundo ele, delineada pelo próprio Immanuel Kant, com o qual passará a ver a filosofia como uma epistemologia. Mas será que o padre Diogo Antônio Feijó pode ter a compreensão de seus escritos a partir apenas de um contexto histórico e de um afastamento da Escolástica?
As preocupações de Tobias Barreto, para Oliveira, podem ser divididas em três temas: a) a luta contra o Espiritualismo Eclético; b) a luta contra os excessos do Positivismo; c) a defesa de um lugar presente para a indagação filosófica e a Metafísica Crítica, negada pelo Positivismo. No entanto, Tobias Barreto questiona a visão da Liberdade versus Determinismo. E se pergunta: como o Determinismo se apresenta no mundo físico e no mundo humano?
Barreto defenderá a liberdade como condição inerente ao Ser humano e para tal, exacerbará a diferença entre o mundo natural e físico e o mundo socio-cultural humano. Discordando de Rousseau, vê Barreto na natureza a fonte de todas as imoralidades, sendo a cultura que leva e retira o humano do estado de natureza, sendo a cultura a responsável por fazer o humano nobre, belo e portador de virtudes outras. A liberdade humana se dá por intermédio da cultura em sociedade, a qual diferencia o humano dos demais animais, pois este é capaz de evoluir e armazenar conhecimentos de geração para geração, tendo a sociedade um caráter de progresso e representando a cultura um fator de elevação e desenvolvimento do humano, suas aptidões e virtudes. A condição de liberdade do humano está intimamente associada ao processo cultural no qual está inserido e a sua consciência (OLIVEIRA, 2006, p. 8-9).
Tobias Barreto, para Oliveira, não só foi influenciado pelo pensamento Kantiano, como também soube diferenciar-se de outros pensadores europeus, como Rousseau, com o qual discorda, quando vê na natureza a fonte de todas as imoralidades, estado possível de ser reparado pela cultura e, pela cultura se evidencia a liberdade. É a cultura que tira o homem do estado de natureza para fazê-lo usufruir da liberdade. A condição de liberdade do ser humano está relacionada ao processo cultural em que se situa. Admite a existência de dois mundos: o mundo natural e físico e o sociocultural humano. Embora não se possa considerar Barreto como um kantiano, também não se pode deixar de considerar a presença das idéias kantianas no amadurecer de suas reflexões. O ser humano só pode ser vítima do Determinismo, possibilitado pela sua condição natural, se não se inserir na cultura, o que lhe possibilitará o exercício da liberdade.
De certo modo, como vimos, o pensamento de Kant penetrou em nossa terra e aqui fez raízes, ora mais superficiais e ora mais profundas, inserindo-se no contexto de uma literatura nacional, voltada para questões e problemas que se passavam na época no Brasil e não podendo, portanto, ser vistas descoladas das principais correntes de pensamento político que perpassavam o nosso país. Na verdade, menos que kantianos, tivemos pensadores que se utilizaram parcialmente do pensamento de Kant como base, da qual podiam argumentar e defender seus pontos de vista, seja contra a permanência de uma Escolástica já ultrapassada e de um governo monárquico que não se encaixava com o modelo liberal que proliferava em idéias ou na oposição a um Positivismo que não só negava a validade da Filosofia como em sua ingenuidade, proclamava-se contra toda e qualquer Metafísica (OLIVEIRA, 2006, p. 12).
Verifica-se, portanto, que a questão relacionada ao porquê da presença do pensamento kantiano em nosso meio, dá-se em duas frentes: a religiosa, a luta contra o pensamento escolástico; e política, representada pela luta contra um governo monárquico, contexto para o qual se deve prestar atenção, ao refletir sobre a presença do pensamento kantiano no Brasil do século XIX. Além de representar explicitamente o pensar filosófico de Tobias Barreto na luta contra o Positivismo que negava a validade da Filosofia, e reconhecendo-a como mera organizadora de conhecimentos possibilitados a partir da ciência contra qualquer Metafísica.
Na visão de Tobias Barreto, a Filosofia é encarada como ferramenta de transformação social e os resultados dela devem contribuir para a melhoria social. E quanto à sua função social, é inegável, mesmo consciente de que nem todos podem compreendê-la e refletir sobre os reais limites do conhecimento humano (OLIVEIRA, 2006, p. 13).
Percebe-se que Immanuel Kant vai muito além do Positivismo de Augusto Comte, dentro do ponto de vista epistemológico na medida em que questiona criticamente os limites de nosso conhecimento. Tobias Barreto entende que Immanuel Kant é um realista moderado e não um racionalista, enquanto para o Positivismo a razão se manifesta com total eficiência no desenvolvimento do pensamento científico, como auge após dois estágios (teológico e metafísico). Para Immanuel Kant, a razão questiona a si mesma, buscando seus limites e possibilidades na construção da experiência do real, garantindo a existência de uma metafísica crítica, defendendo a existência de juízos sintéticos a priori. Deixa questões relacionadas à fé, tais como Deus, a imortalidade e a liberdade para serem discutidas no âmbito da ação e da moral.
... Barreto deixa claro que a presença da Metafísica no conhecimento científico filosófico não é uma questão de opção e não pode a mesma ser expurgada como o queria A. Comte e o Positivismo. Existe uma necessidade intrínseca ao conhecimento que faz com que a Metafísica deva permanecer e não possa ser subtraída de nosso conhecimento. Para entender isto, é necessário argumentar dentro dos moldes da Crítica da Razão Pura de I. Kant (OLIVEIRA, 2006, p. 14).
Para Oliveira, não se pode considerar Barreto como kantiano. Uma vez que não procedeu a um aprofundamento filosófico das teses de David Hume e de Immanuel Kant, além das já mencionadas interpretações equivocadas. Em nenhum momento, desenvolveu a problemática da causalidade de David Hume até Immanuel Kant. Abordou os juízos sintéticos e analíticos e efetuou uma discussão sobre os juízos sintéticos a priori, o que remeteria à “revolução copernicana” efetuada por Immanuel Kant, quanto à relação objeto conhecido e o conhecedor. Quanto ao conceito de númeno e fenômeno em Immanuel Kant, e à sua conseqüência diante da Ciência e da aquisição de conhecimentos em geral, poderia desenvolver a questão referente à distância entre Immanuel Kant e Augusto Comte no tocante à Metafísica (OLIVEIRA, 2006, p. 15).
Enfim, Barreto não desenvolve estas e outras questões fundamentais, de forma que seu discurso mais se assemelha ao de um político querendo convencer uma multidão sobre seus pontos de vista do que o discurso de um filósofo, sempre metódico, cuidadoso e atento para expor, em pensamento coerente e bem fundamentado para um grupo seleto de leitores que utilizarão o mesmo para reflexão e crítica (OLIVEIRA, 2006, p. 15-16).
Oliveira acredita que, quanto à Crítica da razão prática (CRPr), Barreto lança as bases para o que se chama de terceiro momento do kantismo no Brasil, ou seja, a Escola Culturalista, desenvolvida e representada por Miguel Reale. Como Immanuel Kant se deparará com a questão moral após a Crítica da razão pura (CRP), desenvolve sua teoria na CRPr, sem contradizer as premissas apresentadas na CRP. Em outras palavras:
A razão pura se ocupará predominantemente de uma teoria do conhecimento, os limites e as possibilidades do ser cognocente, enquanto cabe a razão prática pôr este mesmo ser cognocente diante de si mesmo e de seus iguais numa situação social que obrigue por necessidade ética, um dado comportamento/atitude e não outra. É, portanto, desta necessidade ética, deste dever ético, que tratará a Crítica da Razão Prática, de forma que, pelo seu próprio tema, ganha primazia sobre a primeira, uma vez que a razão prática trata da própria vida e da forma de vivê-la, seja pelo humano ou pela sociedade em relações e inter-relações (OLIVEIRA, 2006, p. 17-18).
Assim, segundo Oliveira, liberdade humana e leis naturais vivem juntas sem que uma suprima a outra. Vinculada à cultura, a liberdade encontra nas leis naturais, espaço para se desenvolver. É pela cultura que o homem deixa seu estado selvagem e anímico, diferencia-se dos animais e garante sua liberdade.
Oliveira também expressa sua avaliação sobre o que até então foi dito a respeito de Barreto e o uso que ele faz da CRPr: na apreciação da CRPr de Immanuel Kant por Barreto, o precursor do Culturalismo se distancia mais do que realmente Immanuel Kant quis apresentar com sua tese do que com a apreciação sobre a CRP; tanto Kant quanto Barreto admitem certo paralelismo quanto à liberdade da condição humana se dar juntamente com um Determinismo, embora a argumentação de ambos para explicar tal realidade sigam por vias distintas; embora o Imperativo Categórico Kantiano não esteja presente em Barreto, percebe-se nele o enaltecimento da questão moral e ética (OLIVEIRA, 2006, p. 16-17).
O conflito ético em Barreto parece se dar no campo psicológico da consciência humana, em Kant, por sua vez, mais do que algo na esfera psicológica temos um remetimento direto a questão da verdade, pois o imperativo categórico persiste independente do que faça ou deixe de fazer tal indivíduo e mesmo que seus atos não impliquem qualquer conflito psicológico de fundo ético, poderá o mesmo ser errado e não condizente com postulados da razão pura prática. No entanto, parece-nos que em ambos é dada a liberdade para a decisão quanto ao proceder, independente dos valores infligidos (OLIVEIRA, 2006, p. 19).
Os valores são, de acordo com Barreto, associados à cultura e à sociedade em oposição à natureza, sem diferenciar Ética e Moral. Superficialidade e insight convivem juntos com Tobias Barreto. E uma profundidade filosófica que ultrapasse os limites impostos pela história cultural na qual ele está imerso deixa a desejar. Oliveira conclui:
Devemos salientar que do que foi exposto fica claro que a distância que separa Barreto da Crítica da Razão Prática é bem maior que a que lhe separa da Crítica da Razão Pura. A preocupação epistemológica, a não aceitação do dogmatismo e defesa de uma Filosofia e Metafísica Crítica e que propicie o confronto das idéias com a experiência, a crítica ao Positivismo e o reconhecimento de que a Metafísica nos acompanha sempre, seja na vida diária ou nas teorias ditas científicas, bem como a visão do tempo e espaço como algo interno ao indivíduo e não externo, a visão do mundo enquanto fenômenos são pontos que o aproximam da Crítica da Razão Pura. Liberdade coexistindo com Determinismo na vida humana é algo que nos lembra a Crítica da Razão Prática, bem como a valorização da problemática ética e moral, no entanto, neste ponto seu afastamento é bem maior do que qualquer possível aproximação (OLIVEIRA, 2006, p. 20).
Em outras palavras, pode-se afirmar que Tobias Barreto abstraiu de Immanuel Kant o que lhe possibilitava a luta contra uma metafísica dogmática e, por outro lado, afasta-se do pensador alemão no tocante às questões relacionadas à Crítica da razão prática. Não se pode considerar Tobias Barreto como 100% kantiano, como também não se pode desconsiderar a presença de uma influência kantiana no desenvolvimento de seu pensamento.
Analisada com atenção, a exposição de Oliveira sobre a presença do pensamento kantiano na formação cultural brasileira, por meio dos textos do padre Diogo Antonio Feijó e Tobias Barreto, respeita o modo de apresentação dos historiadores das idéias filosóficas no Brasil, o que Guéroult chamou de História Horizontal. Apresenta o contexto cultural como fio condutor das idéias que aqui se fizeram presentes, juntamente com os temas e problemas que dela fizeram parte. Subordina o desenvolvimento das idéias do padre Diogo Antonio Feijó ou de Tobias Barreto ao momento histórico sem questionar as razões pelas quais houve o distanciamento de um ou de outro do pensamento kantiano. Constata, por exemplo, o distanciamento do padre Diogo Antonio Feijó da teoria kantiana quanto às questões éticas e morais, mas não aprofunda a reflexão que faça compreender o que levou o padre a tamanho distanciamento. Mas deve-se considerar também que Oliveira deixa claro, logo no início de sua exposição, que seguirá a metodologia utilizada por Miguel Reale e Antonio Paim. Desse modo, torna-se difícil exigir um aprofundamento mais filosófico na apresentação dos dados que oferece a história sobre a presença do pensamento kantiano no Brasil do século XIX.
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OLIVEIRA, Silvério da Costa. Kantismo no Brasil: Tobias Barreto. In OLIVEIRA, Silvério da Costa. Reflexões filosóficas. Rio de Janeiro: [s.n.], 1997. 257p. Disponível em: http://www.sexodrogas.psc.br. Acesso em 15/07/2006, 00h03 min.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
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