Por: Silvério da Costa Oliveira.
Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) nasce em Copenhaque, na Dinamarca, e vem a falecer aos 42 anos de idade e seis meses de idade. Último dos sete filhos do segundo casamento de seu pai, um homem que havia se tornado rico por meio de seu trabalho no comércio. Do primeiro casamento, seu pai não teve filhos, vindo este a terminar em 1796 com o falecimento da sua esposa, Kirstine Nielsdatter (1756-1796), o segundo casamento se deu com Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund (1768-1834).
Quando seu pai falece, em agosto de 1838, Kierkegaard herda uma fortuna que lhe permite viver com tranquilidade e se dedicar totalmente aos seus escritos, além deste fato representar um marco da vida do filósofo, pois, seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838), sempre foi uma figura importante em sua vida, estando presente na sua formação intelectual e espiritual e exercendo influência sobre a sua religiosidade, na qual temos um constante senso de culpa e melancolia (tanto no pai, como também no filho). De certo modo, Søren Kierkegaard herda também o fardo existencial de seu pai e isto o influencia na elaboração de sua própria obra filosófica, ao se dedicar a abordar temáticas vinculadas à mortalidade, ao sofrimento, à existência humana, ao desespero, à angústia e ao papel da fé cristã.
Kierkegaard ingressou no curso de Teologia na Universidade de Copenhague, tendo interrompido por um período. Após a morte do pai, retornou os estudos em Teologia e Filosofia, vindo a obter a licenciatura em 1840 e recebendo o grau de mestre em 1841, que, segundo alguns comentadores, seria hoje o equivalente ao grau de “Doutor – PhD”. Sua tese de filosofia foi “Sobre o conceito de ironia”. Kierkegaard recebeu a alcunha de “o Sócrates do norte”.
Do ano de 1837 até o ano de 1841 mantém um romance com Regina Olsen (1822-1904), por quem se vê apaixonado e correspondido, mas prefere terminar o relacionamento sem maiores explicações para a jovem por motivos de conflitos emocionais internos que envolviam dilemas entre a vida mundana e a religiosa. Em 1841, após o rompimento de seu noivado, foi a Berlim e ali participou como aluno das aulas ministradas por Schelling. Em 1855, após um ataque repentino de paralisia tido na rua, é levado ao hospital e vem a falecer pouco depois (cerca de 40 dias, nos quais esteve hospitalizado e com sua saúde piorando, mas mantendo a consciência).
É comum aos comentadores destacarem que Kierkegaard tinha uma saúde frágil (há relatos de que no final de sua vida teria desenvolvido uma tuberculose) e que o tema da morte e angústia desenvolvido em sua filosofia existencial tem em suas origens a vida que Kierkegaard viveu. Neste tocante, sempre destacam a morte de sua mãe, de seu pai e de cinco de seus irmãos (seus pais tiveram um total de 7 filhos), bem como, o término do relacionamento com Regina Olsen, mulher de quem ficara noivo, mas que resolvera romper o noivado para se dedicar a uma melhor compreensão sobre sua própria religiosidade e relação com Deus e o cristianismo.
Em seus trabalhos iniciais e no decorrer de sua vida, fez uso de distintos e diversos pseudônimos para a publicação de suas obras, para poder, deste modo, apresentar pontos de vista distintos sobre os mesmos temas e assim permitir uma discussão sobre os mesmos.
Sua obra literária e filosófica se confunde com sua biografia, sendo necessário o estudo simultâneo de sua vida e obra para melhor compreensão de suas ideias filosóficas e teológicas. No transcurso de sua vida se dedicou a escrever seu “Diário”, importantíssimo no estudo de sua filosofia.
No decorrer do século XIX ele foi praticamente ignorado fora de seu país, em todo o mundo, não exercendo qualquer influência realmente significativa. Somente a partir da década de 1920, a par com estudos alemães provenientes da teologia e filosofia, é que nosso filósofo passa a ser admirado ao redor do mundo. Há comentadores que atribuem a Kierkegaard ser o fundador do Existencialismo que eclodiu na filosofia no transcorrer do século XX. Sua obra exerceu forte influência na filosofia, teologia e psicologia contemporâneas, enfatizando a singularidade da experiência humana.
O pensamento de Kierkegaard é essencialmente religioso cristão. Em sua obra ele aborda temas tais como: o humano diante de Deus; o pecado; a salvação pela fé. Toda a sua grande produção literária tem um certo caráter pessoal e confessional, mostrando-se como uma sincera expressão de suas convicções religiosas mais íntimas. A vida cristã que o filósofo resolveu adotar para si traz, também, uma forte crítica ao cristianismo presente na Igreja luterana pietista dinamarquesa de sua época, crítica esta presente em seus escritos.
Kierkegaard não desenvolve um sistema filosófico, sendo, inclusive, tido como um pensador antissistemático. Em sua obra se opõe ao hegelianismo e se apresenta como um escritor religioso cristão.
Diante do império praticamente absoluto da influência da filosofia de Hegel em seus contemporâneos europeus, Kierkegaard mantém uma atitude filosófica de total oposição a esta razão que tudo abarca, considerando a realidade como algo singular, presente à subjetividade do indivíduo e sendo algo primário e irredutível a qualquer outra coisa, inclusive à própria razão.
Em Kierkegaard temos uma forte crítica ao sistema filosófico de Hegel, então dominante na Europa continental. Kierkegaard entende que a abordagem sistemática e totalizadora presente no sistema hegeliano tende a ignorar a verdadeira singularidade da experiência humana e a subjetividade presente no sujeito. Dentro do modelo proposto por Hegel temos uma ênfase no desenvolvimento histórico e na razão, já Kierkegaard coloca sua ênfase em questões existenciais.
Kierkegaard formulou a teoria dos três níveis de conhecimento: 1- estético, 2- ético e, 3- religioso. O estágio estético se apresenta em três distintos modos que o subdividem, a saber: Don Juan, Fausto e Ahasverus. Em Don Juan temos a sensualidade, em Fausto a dúvida e, no judeu errante Ahasyerus temos o desespero.
No estágio estético temos a sensualidade, a dúvida e o desespero. Neste estágio (ou estádio) a pessoa vive o eterno aqui e agora em uma vida dedicada aos prazeres. É o lugar do homem sedutor, que conquista uma mulher para depois passar para a outra, sem manter compromissos duradouros. No estágio ético temos a moral, o cumprimento do dever, ser um bom marido, pai, construir uma família, ser um bom cidadão cumpridor de seus deveres legais e religiosos. No estágio religioso temos a total entrega a Deus, ultrapassando não somente o homem estético, mas também o homem ético. Se entregar a Deus é se entregar ao paradoxo, ao absurdo. É se colocar além da ética e da religiosidade exigida socialmente. Os estágios não são sucessivos e não estão vinculados à idade da pessoa (adolescência, vida adulta, velhice não há uma passagem tranquila de um estágio para outro e sim um salto de um para o outro. Entre o estágio ético e o religioso é como se a pessoa saltasse em um abismo sem fundo.
Entre os três estágios (estético, ético e religioso) há alternativas, escolhas, que podem ser sumarizadas na frase: “ou um, ou o outro”. Estando sempre presente o aspecto existencial. A existência não depende da essência. A essência, como algo ideal, é pensado e definido. Já a existência, por sua vez, não é ideal, e sim real, sendo, portanto, indefinido e, por vezes, impensável. A verdade não se encontra no puro pensamento e sim na subjetividade.
O personagem bíblico Abraão, tido como cavaleiro da fé, é mostrado como sendo um exemplo sobre como o homem no estágio religioso, o terceiro dos três estágios propostos por Kierkegaard, funda sua existência na transcendência e na confiança em Deus. Ao agir assim, como nos narra a passagem bíblica (Livro de Gênesis, capítulo 22, versículos 1 a 19), perante seu filho Isaac e perante Deus, Abraão ultrapassa as regras morais e o entendimento provindo da razão humana, dando um salto em direção à fé e ao absoluto. Este procedimento adotado por Abraão, este salto de fé, há de escandalizar a moral e a ética, bem como, também, a razão humana.
Muito importante em sua obra é a forma como trabalha os conceitos de ironia e angústia. Para a ironia se baseia no filósofo Sócrates e entende não ser possível trazer a verdade para a pessoa por meio da aprendizagem de uma dada doutrina. A busca da verdade é uma busca por uma verdade interior, subjetiva, que vincula o sujeito ao universo. Já para a angústia, entende que esta é central à existência humana e se dá sempre diante da liberdade que temos para fazer nossas escolhas. A angústia é mesmo anterior ao pecado original, pois, foi o sentimento (angústia) que antecedeu o ato praticado por Adão e Eva ao escolherem comer o fruto proibido. O real fundamento da existência humana se encontra diante da liberdade e da angústia, a liberdade que antecede e permite a escolha entre obedecer ou não a Deus e a angústia que ali também se faz presente, diante deste abismo de possibilidades que o sujeito pode, por sua escolha livre, saltar. A angústia analisada e estudada por Kierkegaard encontra sua origem na liberdade individual que nos permite, a nós humanos, exercer escolhas diante de uma realidade imanente ou transcendente.
Tanto a “angústia”, como também o “desespero” são centrais dentro da obra de Kierkegaard. Por meio de tais conceitos o filósofo aborda a condição humana em toda a complexidade presente nas experiências que circunscrevem a sua existência. A angústia é algo mais amplo e universal, que tem como foco a liberdade humana (liberdade, responsabilidade, possibilidades) e suas infinitas possibilidades de escolhas, sempre voltada para o externo ao ser (ao sujeito, a pessoa). O desespero é algo mais específico, um tipo particular de angústia voltada para o interno (identidade, dúvidas), a toda luta interna tida na pessoa.
O desespero se apresenta como uma condição existencial do ser humano, resultado da alienação em relação a sua verdadeira identidade, podendo se tornar presente de vários modos. Está presente na luta interna que ocorre entre quem a pessoa realmente é e quem a pessoa gostaria de ser. A superação do desespero se dá por meio da fé cristã, permitindo esta a religação do sujeito consigo mesmo, encontrando significado para a sua vida. Conjuntamente com a angústia, são dois sentimentos básicos a todos os humanos.
A filosofia de Kierkegaard tem como foco, também, a relação do sujeito (enquanto ser existente) com Deus. Entende que a verdadeira religião se dá enquanto experiência profundamente pessoal, íntima e autêntica, não podendo ser mediada por terceiros, sejam estes instituições (Igreja) ou dogmas religiosos.
Sua filosofia trata da liberdade, da individualidade, da fé e da condição humana enquanto ser existencial, tendo forte ênfase na subjetividade. Em sua filosofia encontramos um desafio atual para o confronto com nossa própria angustia e desespero, diante de responsabilidades, da liberdade e do significado que devemos dar a nossas vidas.
PRINCIPAIS OBRAS
1- Enten-Eller. Português: "Ou Isto ou Aquilo". Data: 1843. (2 volumes).
Coletânea de ensaios que apresentam o modo de vida “estético” (primeiro volume) e o “ético” (segundo volume). O estético apresenta uma visão hedonista da vida, já o ético uma visão pautada na responsabilidade moral. São debatidos aqui questões filosóficas e existenciais, bem como, o dilema entre a escolha de uma vida prazerosa ou uma vida voltada para o dever moral.
2- Frygt og Bæven. Português: "Temor e Tremor". Data: 1843.
O livro se baseia na histórica bíblica de Abraão quando da tentativa de sacrifício de seu filho Isaac. A fé ultrapassa a moral e a razão. Aqui é abordado o conceito de “angústia” perante decisões que se colocam além da razão e ética humana, no campo da fé e religiosidade, que nos pedem um “salto de fé”. É tratada a diferença entre a moral universal e a fé individual e como esta pode ir além das normas morais, éticas ou mesmo da razão.
3- Gjentagelsen. Português: "A Repetição". Data: 1843.
Ensaio filosófico sobre o conceito de “repetição” enquanto categoria existencial. Por meio da “repetição” pode-se recuperar o sentido e a felicidade da vida. São tratados os temas da esperança e do desespero.
4- Philosophiske Smuler. Português: "Migalhas Filosóficas". Data: 1844.
Nesta obra é tratada a relação existente entre a verdade e a fé. Qual a diferença entre conhecer a verdade por meio de ideias abstratas ou por meio da revelação Divina. O encontro com o absoluto (Deus) se dá por meio de um “salto” de fé, e não por meio da razão.
5- Begrebet Angest. Português: "O Conceito de Angústia". Data: 1844.
Exame da angústia enquanto condição fundamental para a existência humana. O autor aborda nesta obra importantes conceitos, tais como: pecado original, liberdade, angústia, escolha moral.
6- Stadier paa Livets Vej. Português: "Estádios no Caminho da Vida". Data: 1845.
Continuação da obra “Ou isto ou aquilo”. São tratados aqui os três estágios da existência humana: estético, ético e religioso. O autor argumenta que cada um destes estágios é marcado por um determinado modo de vida e que a passagem de um para o outro se dá por meio de um “salto”.
7- Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift. Português: "Conclusão Não-Científica às Migalhas Filosóficas". Data: 1846.
Complemento a obra “Migalhas filosóficas”. Continuação da temática sobre a natureza da verdade subjetiva e o papel desempenhado pela fé cristã. Há uma crítica ao sistema filosófico de Hegel e uma defesa de que a verdade existencial se mostra sempre de modo subjetivo e vinculada a escolhas pessoais.
8- Kjerlighedens Gjerninger. Português: "As Obras do Amor". Data: 1847.
Discussão sobre o conceito cristão do “amor ao próximo” em sua vinculação com o dever de obediência a Deus. A obra tem como tema a natureza do amor altruísta e como este se diferencia do amor egoísta. Há uma discussão sobre as obrigações éticas daqueles que se consideram cristãos.
9- Sygdommen til Døden. Português: "A Doença até a Morte". Data: 1849.
Análise sobre a relação existente entre o “desespero” e o “eu”. O “desespero” recebe a definição de “doença até a morte”, na qual a pessoa se vê incapaz de reconciliar-se com sua natureza finita em relação ao infinito que é Deus. Uma discussão sobre o desespero existencial e a possibilidade de sua superação por meio da fé no Deus cristão.
10- Indøvelse i Christendom. Português: "Prática do Cristianismo". Data: 1850.
O autor trata de como seguir de modo autêntico ao Cristo, Deus encarnado, bem como, apresenta uma crítica a instituição do cristianismo, defendendo que a verdadeira fé no Deus Cristão torna necessário uma radical imitação de Cristo e que esta imitação tende a se opor aos confortos e normas de nossa sociedade atual.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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